Em A Doce Vida (1960), de Federico Fellini, a atriz norte-americana Sylvia (Anita Ekberg) e o jornalista Marcello Rubini (Marcello Mastroiani) passam a noite percorrendo os pontos turísticos tradicionais de Roma. Terminam o passeio com um banho na Fontana de Trevi, cena, aliás, que se tornou uma das mais famosas do cinema moderno. Na porta do hotel, os dois são surpreendidos por Robert (Lex Barker), o noivo da belíssima atriz, que passara a noite à sua espera. Irritado, ele esbofeteia-a e esmurra seu acompanhante, com os paparazzi por testemunha.
A violência do macho alfa contra Sylvia é de uma naturalidade chocante para o espectador da atualidade. Ninguém a defende, nem ela própria nem seu parceiro da noite. O jornalista também não se defende. Apanha e segue adiante, para a próxima aventura. Há um clima de condescendência com a ira masculina diante do “deslize” da mulher, que o abandonara em uma festa para passear pela cidade com um deslumbrado pretendente.
O filme A Doce Vida tornou-se clássico por fazer a premonição de uma mudança estrutural na sociedade. Ele antecipa uma nova era pautada no consumo e no espetáculo; antevê mudanças nos laços humanos e a ascensão da incerteza, da insegurança e do vazio existencial, tão em voga nesta contemporaneidade. Apesar disso, o filme também não escapa de ser a expressão de uma época.
Há dois tipos de mulheres em A Doce Vida. Maddalena (Anouk Aimée) – libertária, dona de seu corpo e de sua sexualidade – é a mulher deste século 21. Sylvia – romântica, submissa e dependente do olhar de aprovação do macho – é a mulher do século passado. O choque entre essas duas mulheres provocou em mim uma sensação de estranhamento e esta reflexão sobre o que o cinema já contou e o que ele nos conta sobre nós mesmos.
A “natural” cena da surra sofrida por Sylvia nos anos 1960 parece improvável no cinema do século 21. Infelizmente, a violência contra a mulher ainda resiste, como na época de Fellini, mas sua representação cinematográfica perdeu a naturalidade de antes. Hoje ocorre como uma manifestação de inconformismo, de indignação, de denúncia. Deixou de ser natural.
Numa feliz oportunidade de conversar com o psicanalista Jorge Forbes durante sua visita a Goiânia, em 23 de fevereiro – para uma palestra na Escola Judicial do Fórum Trabalhista –, expus-lhe minha percepção sobre os assuntos recorrentes nos filmes mais recentes. Acabara de assistir a dezenas de filmes dos 114 em cartaz na 11ª Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, no Cine Lumière, e encontrara um elo forte entre eles. Independentemente de gênero, do país de origem ou da língua, o cinema tem dado prioridade à angústia, à insegurança, à incerteza e ao vazio antevistos por Fellini há 58 anos, suas causas e consequências.
Os filmes buscam nas histórias do indivíduo, de sua formação cultural, religiosa e familiar, nas suas relações com mãe, pai (ou alguém que os represente nesta relação familiar), a chave para a compreensão de atitudes e fatos. Foca, portanto, no ser humano contemporâneo que, segundo Jorge Forbes, vive sob novos laços sociais.
O psicanalista recorre ao estudo do filósofo francês Luc Ferry (Aprender a Viver e A Revolução do Amor), em que este faz um histórico das cinco fases vividas pela civilização. No primeiro período, os laços sociais organizaram-se em torno da transcendência da natureza. O papel do humano era naturalmente definido, uns nasceram senhores, outros escravos, por exemplo.
A transcendência divina marca o segundo período, em que os papéis humanos viriam do divino. A razão substitui o divino no terceiro período, o do Iluminismo. O quarto advém da Filosofia do Martelo, de Nietzsche, de desconstrução dos conceitos teóricos do divino e do humanismo. Por fim, segundo Ferry, a civilização entra no quinto período, o atual. A era atual surge de uma “revolução jamais vista”, afirma Jorge Forbes, em que os laços sociais deixaram de ser verticalizados e passaram a ser horizontalizados.
“Nos laços verticais, as pessoas se uniam em torno de um símbolo. Em [uma sociedade com] um laço social padronizado, você tem duas possibilidades, aderir a ele ou se rebelar contra ele e ser um rebelde. Essas são as características da modernidade, que eu chamo de Terra Um, até 40 anos atrás. Com o advento da pós-modernidade, com a quebra dos laços, com o surgimento da flexibilidade – ou Terra Dois, segundo sua definição –, você não tem mais padrões de comportamento, cabe a cada um inventar uma singularidade na forma de ser e passar essa singularidade no mundo. O que muda é o seguinte: você sai de uma sociedade disciplinar e entra numa sociedade de responsáveis”, disse Forbes em entrevista a esta jornalista para a Rádio Sagres 730.
E é a este sujeito singular que o cinema tem se dedicado. A descoberta do sujeito é a marca desde filmes biográficos como Eu, Tonya (Craig Gillespie) a produções como O Insulto (Líbano, Ziad Doueiri), este baseado em fatos reais, para ficar em dois exemplos.
A cinebiografia da ex-patinadora no gelo Tonya Harding, que rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante a Allison Janney, mostra não como seu ex-marido Gef Gilloly tentou incapacitar sua principal adversária nas pistas, mas a vida de uma menina pobre, com uma mãe abusiva e um pai omisso e a reprodução da violência da qual foi vítima em sua própria vida e na das pessoas de seu entorno. O Insulto mostra como um incidente banal tem o poder de detonar os fantasmas do inconsciente humano.
O cinema tenta, portanto, dar conta da complexidade do ser humano pós-moderno que Federico Fellini antecipou em A Doce Vida e que não já não cabe mais em esquemas arquetípicos. Assim, surgem personagens fora do padrão, como uma mãe cruel (Sem Amor, Rússia) ou vingativa (Três Anúncios para um Crime, EUA); o lado bom de um policial violento, racista e homofóbico (Três Anúncios…), e um amoroso e dedicado professor de natação que pode tanto ser um pedófilo quanto vítima de uma denúncia falsa viralizada nas redes sociais (Aos Teus Olhos, Brasil).
“Há uma mudança drástica no laço social humano, na forma de a gente ser, que nos exige uma nova concepção, novos conceitos”, disse Forbes. Mesmo sem a genialidade de Fellini, o cinema se esforça para apresentar e explicar esse novo ser humano.