Desde os primórdios, o homem usa a arte para expressar sentimentos, seu modo de vida e a sua própria história. Espontânea, muitas vezes considerada ingênua pela sua temática popular, a arte primitivista registra a história de um povo das mais diferentes formas. Sem formação acadêmica, os artistas primitivos usam a sua arte livremente para expressar os mais diversos temas, retratar o seu universo particular, personagens, narrar lendas, a religiosidade do seu povo e contar as histórias do seu tempo e lugar.
No Brasil, a arte primitivista tem excelente representatividade em todas as regiões, e artistas consagrados até mesmo no exterior. Pode-se afirmar sem medo de errar que se trata de um estilo tipicamente brasileiro. Museus, galerias, ateliês e importantes coleções reúnem o que há de melhor da arte naif, como a intitularam os franceses no século XIX. Referência do estilo e importante canal de divulgação, a Bienal de Arte Naif de Piracicaba, organizada pelo Sesc, tem premiado e divulgado os artistas deste segmento e realizado concorridas exposições, com a publicação de catálogos. Há nomes extremamente valorizados no mercado, como o goiano Antônio Poteiro e os pernambucanos Samico e J.Borges.
Em sua segunda edição, o Encontro Nacional de Artistas Naifs no Centro-Oeste – 2º EnaNco, iniciativa muito bem-vinda da artista visual Helena Vasconcelos, em cartaz na Vila Cultural Cora Coralina, congrega o melhor dos artistas naif de todas as regiões do País, com o patrocínio da Lei Goyazes de Incentivo à Cultura. Se na primeira edição, realizada em 2017, no Museu de Arte de Goiânia, os artistas eram poucos, a segunda ganhou dimensão muito maior. Sessenta artistas, entre os mais destacados de cada região, participam do encontro deste ano.
Goiás está muito bem representado no salão por nove artistas: Omar Souto, Alessandra Teles, Sandro Carvalho, Helena Vasconcelos, Américo Poteiro, Dilvan Borges, Manoel Santos, Pedro Galvão e R. Domingues. A Região Nordeste, onde a presença da arte primitivista é muito forte, conta com o maior número de pintores. Com exceção do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Paraná, todos os demais Estados estão representados no encontro. Não sem falta de convite. Único estado da Região Norte presente no EnaNco, Roraima enviou obras da índia Carmezia. Na tela Lenda do Caracaranã, ela narra uma bela lenda amazônica. Entre as mais antigas pintoras em atividade, a alagoana Tânia Pedrosa, 85 anos, ganhou homenagem especial. Firme e forte com seus pincéis, Tânia está sempre pronta para retratar a vida na sua terra.
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A Casa do Imaginário de Tânia, de Tânia Pedrosa: aos 85 anos, a artista continua em atividade. Foto: Waldemy Teixeira
Morando atualmente na Finlândia, a paulista Luciana Mariano fez questão de integrar a coletiva com as divertidas telas de pequena dimensão Bela, Recatada do Lar, uma sátira à ex-primeira-dama Marcela Temer, e Conto de Fadas Moderno, referência bem-humorado às mulheres supervaidosas. Vânia Cardoso, de São Paulo, Parísina Ribeiro e Bia Teles, de Minas Gerais, enviaram imagens bucólicas, jardins floridos e congadas em suaves pontos de bordados. Ruiy Moura, de São Paulo, homenageia o mestre Arthur Bispo do Rosário, com dois belos painéis bordados à mão. Mestre dos pincéis, Damasceno Teles morreu em Belo Horizonte no dia 20 de março. Deixou seu trabalho imortalizado nas suas obras inspiradas nas festas populares urbanas de sua querida Minas Gerais. Nilson Pimenta, de Mato Grosso, morreu no final de 2018.
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Conto de Fada Moderno, de Luciana Mariano. Foto: W. Teixeira
São tantas as abordagens das obras que é difícil enumerá-las. Há festas populares, folguedos, danças, folclore, lendas, brincadeiras, personagens, fauna, flora, paisagens, casarios, religiosidade, crenças, vida urbana. André Cunha (RJ) fez uma releitura do famoso quadro Primeira Missa no Brasil, de Pedro Américo, com uma singeleza marcante. Alex Freire (PE) explora temas caros aos nordestinos: Padre Cícero, religiosidade, romeiros e ex-votos. Carminha (TO) inspirou-se na mexicana Frida Khalo, Célia Gondim (PB) nas vendedoras de frutas das quermesses, e Enzo Ferrara, na polarização política da eleição de 2018. A Festa de São Pedro de Patrícia Helney (MS) é de encher os olhos com sua beleza plástica assim como a delicadeza das meninas do Pastoril, de Max Almeida, de Alagoas. A obra de Joilson Pontes (MG) traz reminiscências da infância dos meninos em perna de pau brincando na rua. Ivone Mendes (PE) recorda o animado carnaval de Pernambuco com a tela dos bonecos gigantes, do maracatu, bumba-meu-boi e a ferveção do frevo.
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A Coroação do Mestre Poteiro, de Con Silva (SP): homenagem ao grande artista de Goiás. Foto: W. Teixeira
Não foi uma tarefa fácil reunir tantos artistas no imenso salão da Vila Cultural, em Goiânia. Dispendioso, trabalhoso, o encontro demandou enorme logística e cuidadosa produção. Vinte e sete artistas estiveram presentes na noite de abertura, que teve apresentação de congada e folguedos de Goiás. Para concretizar o projeto, Helena Vasconcelos viajou por quase todo o País, conheceu artistas, fez convites pessoalmente, por telefone e por e-mail. As inscrições, feitas por meio de edital publicado nas redes sociais e no site da Secretaria de Estado da Educação e Cultura (Seduce) atraíram 84 inscritos. Posteriormente 60 artistas foram selecionados por um júri formado pela curadora e ex-diretora do Museu de Arte de Goiânia Mairone Barbosa, o galerista, curador e marchard PX Silveira e o professor de História da Arte Augusto Luitgards. No início, Helena sonhava com apenas uma exposição coletiva reunindo os naifs. No entanto, a repercussão foi tão grande desde a primeira edição em 2017, que foi preciso ampliar e pensar em algo maior. Daí veio a ideia do encontro que, se depender da artista, terá continuidade em 2021.
Pintando a alma
Livre de normas e técnicas, a arte primitivista proporciona ao artista expressar suas vivências de maneira muito particular, sem preocupar-se com a perfeição do desenho, as formalidades de técnicas, perspectivas e composição. Com sensibilidade, ele capta momentos, o belo e o feio, lugares, habitantes, hábitos e costumes, imortalizando fatos e histórias. “Enquanto os acadêmicos pintam o cérebro, os ingênuos pintam a alma”, avaliam os críticos.
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A artista mexicana Frida Kahlo, pelo olhar de Carminha, do Tocantins. Foto: Waldemy Teixeira
Gente simples, muitas vezes carentes de tudo, com pouca instrução, o naif desponta com naturalidade do meio do povo. Espontaneamente, descobre na arte um meio de expor suas dores do dia a dia, suas alegrias e tristezas. “A dor faz brotar coisas belas. É no sofrimento que o artista encontra beleza”, observa Helena, uma artista preocupada em ampliar a divulgação dos artistas para que possam viver do seu trabalho. Para ela, o EnaNco é um caminho enriquecedor, porque possibilita que as pessoas conheçam as obras e seus artistas, as características de cada região e a história de cada Estado desse imenso País.
Goianos
Goiás tem em Antônio Poteiro um dos maiores expoentes da arte naif brasileira. Mas há muitos outros artistas que representam muito bem o estilo, como a própria Helena Vasconcelos, uma atenta historiadora do folclore, das festas populares e da religiosidade do povo goiano. “Arte naif não é uma arte passageira. Ela é uma arte muito fortalecida. Todo mundo se identifica, admira e interage com ela. No Nordeste, o estilo é muito forte, tem uma representatividade enorme em todos os Estados”, sublinha.
Entre os selecionados de Goiás está Américo Poteiro, filho de Antônio Poteiro, com quem aprendeu a pintar e a esculpir no barro. Escapando da influência paterna, o artista tem buscado linguagem própria, apostando em flores e pássaros. Alessandra Teles não pode ser considerada uma primitivista autêntica. Com formação acadêmica, ela iniciou a carreira com enfoque indígena, conseguindo projeção. Nas telas que apresenta no EnaNco, as tartarugas são seu objeto pictórico.
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Unidos pelo Som, de Helena Vasconcelos: cores vibrantes das festas populares de Goiás. Foto: Waldemy Teixeira
Delicadas, as duas telas de Dilvan Borges remetem a mandalas enfeitadas com pequenas flores, folhas e peixes. Organizadora do EnaNco, Helena Vasconcelos apresenta três telas sobre folclore e festas populares de Goiás: Congada, Cavalhadas, Divino Espírito Santo, catira, caipira, fiandeiras, em cores vibrantes e alegres.Diversas vezes premiado, Manoel dos Santos explora a fauna do cerrado com muita habilidade. Seus traços e cores vivazes, animais brincalhões em atitudes divertidas são marcas inconfundíveis na obra do artista, que tem lugar cativo na arte naif de Goiás. Manoel está muito feliz com o resultado do encontro, que o permite conhecer a arte naif de diferentes lugares e a troca de experiência com outros artistas. “É possível ver de perto a qualidade dos trabalhos que estão sendo feitos em todo País”, analisa. Manoel acredita que iniciativas assim ampliam a divulgação e também abrem o mercado para os artistas primitivistas. “Exposições, bienais, salões e encontros são muito bem-vindos”, diz.
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Carrinho de lobera, de Manoel Santos. Foto: W. Teixeira
Simples como a pintura que o consagrou, autêntico e um exemplo de tenacidade, Omar Souto não poderia faltar na seleção do encontro organizado por Helena Vasconcelos. Comemorando 55 anos de carreira, Omar é um artista naif que sabe bem retratar o cotidiano e o povo simplório do interior. Suas cenas de casamento são impagáveis. “Sou um pedreiro que virou pintor. Minha pintura é fiel ao que vivo no dia a dia, ao que observo ao meu redor”, garante. Omar, como quase todos os demais artistas primitivistas, não frequentou escola de artes. Sua pintura é intuitiva, suas cores são cruas como o ambiente onde vive. “Conto história colorida”, assegura o artista, que prepara uma série de painéis para uma grande exposição fora do País. Menção honrosa no Festival Internacional de Arte Naif de Guarabira (PB), Omar dedica-se à pintura diariamente em seu ateliê em formato de Taj Mahal, no Jardim Novo Mundo. “Não sei fazer outra coisa. Só sei pintar. Todo evento que me convidam estou dentro”, brinca.
As cenas urbanas da grande Goiânia enchem as telas de Pedro Galvão. O artista gosta de pintar artistas de rua, desses que engolem fogo, fazem bambolê, andam na corda bamba e em pernas de pau, tocam cornetas, e se equilibram em monociclos nos parques e nos cruzamentos da capital. Difícil não se identificar com seus trabalhos de tons vibrantes e alegria contagiante. R.Domingues detém-se nas abordagens bíblicas, e Sandro Carvalho nas memórias infantis repletas de magia e encantamento.
A grande coletiva do 2º Encontro Nacional dos Artistas Naifs no Centro-Oeste ficará aberta até o dia 21 de abril, na Vila Cultural Cora Coralina, e é uma excelente oportunidade para quem aprecia conhecer hábitos, costumes, folclore e as tradições do povo brasileiro em suas diferentes regiões. Escolas interessadas podem agendar visitas.
Serviço
Exposição: Coletiva do 2º Encontro Nacional de Artistas Naifs no Centro-Oeste
Data: Até 21 de abril
Local: Vila Cultural Cora Cora Coralina (Rua 23, esq.c/ Rua 3, Centro – atrás do Teatro Goiânia). Telefone: (62) 3201-9863
Horário: 9 às 17 horas (Terça a domingo)
Entrada gratuita
Excelente materia valorizando a arte naif e seus artistas.
Agradeço a jornalista Valbene Bezerra por divulgar a mostra 2*ENANCO que ocorre na Vila Cultural Cora Coralina, valorizando ainda mais a História Colorida dos participantes da mostra.
Excelente análise da exposição do II Enanco. Evento maravilhoso de muita importância para os artistas naif e a população de Goiânia que é grande apreciadora da arte. Parabéns pelo olhar !