Patrimônio histórico e cultural da humanidade, a catedral de Notre-Dame de Paris, ao longo de seus mais de oito séculos de existência, povoou a imaginação de escritores, poetas, músicos, pintores, escultores, gravuristas, fotógrafos etc. Em homenagem a esse monumento tão terrivelmente castigado pelo fogo na última segunda-feira, dia 15 de abril, ERMIRA apresenta uma seleção em verso e em prosa dedicada a Notre-Dame. Confira um poema inédito do escritor e colunista de ERMIRA, Luís Araujo Pereira, inspirado em uma visita sua à igreja em 2015; os famosos (e proféticos) versos de Gérard de Nerval sobre a catedral; recortes de uma longa ode de Théophile Gautier à basílica, e a abertura do também célebre capítulo do romance O Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, em que ele lamenta o estado de degradação da igreja no início do século XIX.
7. juin. 2015
Luís Araujo Pereira (1946-)
Na catedral de Notre-Dame
̶ ao invés de rezar ̶
chorei por mim
Chorei pelos normandos
que nos espiam nos museus
chorei pelos gauleses
que sobrevivem nas páginas
de Uderzo e Goscinny
Chorei pelos meus
e por todos os que amo
e pelos que dormem
o sono de mármore
̶ todos estes que morreram
sem perguntar-me
se eu queria esquecê-los
[Extraído do livro inédito rasoquasefundo (2013-2018)]
Notre-Dame de Paris
Gérard de Nerval (1808-1855)
Notre-Dame é bem velha: nós a veremos talvez
Enterrar, um dia, Paris, que ela viu nascer;
Mas, dentro de alguns milhares de anos, o Tempo fará vergar
Como um lobo faz com o gado, essa carcaça pesada,
Entortar seus nervos de ferro, e depois com dentadas surdas
Roer tristemente seus velhos ossos de pedra!
Muitos homens, de todas as nações da Terra
Virão para contemplar essa ruína austera
Sonhadores, ao lerem o livro de Victor
— Então, eles acreditarão ver a velha basílica
Assim como ela era, pujante e magnífica,
Elevar-se diante deles como a sombra de um morto!
[Extraído de Odelettes (1834)]
Notre-Dame (trechos)
Théophile Gautier (1881-1872)
Esgotado dessa calma aborrecida em que já fenecem,
Como um lago que adormece, nossos anos extenuados
Esgotado de sufocar minha vida em um salão estreito,
Com jovens gorduchos e mulheres frívolas,
Trocando sem proveito palavras banais;
Esgotado de apenas tocar meu horizonte com o dedo.
Para me reerguer e alargar minha alma,
Teu livro no bolso, ao redor de Notre-Dame;
Eu vou sempre, Victor,
Às oito horas, no verão, quando o sol se põe,
E seu disco fulvo, à beira dos telhados que ele toca,
Flutua como um grande balão de ouro
[…]
Como, para desejar boa-noite, de uma tonalidade mais rica,O dia que termina reveste a santa catedral
Esboçada a traços largos no horizonte de fogo;
E suas torres gêmeas, esses cânticos de pedra,
Parecem os dois grandes braços da cidade em prece,
Antes de dormir, que elevam-se em direção a seu Deus
[Extraído de La Comédie de la Mort (1838)]
Notre-Dame
Victor Hugo (1802-1885)
Sem dúvida, o edifício da igreja de Notre-Dame de Paris é ainda hoje majestoso e sublime. Todavia, por mais que ele tenha conservado sua beleza ao envelhecer, torna-se difícil não suspirar, não se indignar diante das degradações, das inúmeras mutilações a que simultaneamente o tempo e os homens submeteram o venerável monumento, sem respeito por Charlemagne, que nele colocou a primeira pedra, nem por Philippe-Auguste, que nele colocou a derradeira.
Na face dessa velha rainha de nossas catedrais, ao lado de uma ruga, encontra-se sempre uma cicatriz. Tempus edax, homo edacior. Com satisfação, eu traduziria assim: o tempo é cego, o homem é estúpido.
(Abertura do capítulo 1, do Livro III, do romance O Corcunda de Notre-Dame, intitulado “Notre-Dame”)
Os textos dos autores franceses foram traduzidos por Rosângela Chaves, em colaboração com Luís Araujo Pereira
Que maravilha essa seleção. Obrigada amigos. E o poema inédito do Luís, pungente.