[Coautores: André Koutchin de Almeida[1] e Weiny César Freitas Pintor[2]]
Platão foi um filósofo grego, nascido na cidade de Atenas, por volta de 428/427 a.C. Ilustre, entre outras razões, por retratar seu pensamento por meio dos seus famosos “diálogos filosóficos”, Platão nos trouxe inúmeras reflexões que atravessam a história da filosofia ocidental com inigualável atemporalidade. Especialmente sobre os Diálogos platônicos, há uma longa tradição interpretativa que, repetidamente, se volta a eles. Na contramão dessa tradição, o filósofo brasileiro Hector Benoit procura preparar o leitor contemporâneo para ler a obra platônica em si e por si mesma, a fim de compreender de que maneira Platão foi sendo milenarmente “falado” e interpretado sem que, muitas vezes, fosse “ouvido” e compreendido, em silêncio, em sua bruta materialidade lexical, isto é, sem que fosse lido a partir do que efetivamente escreveu e inscreveu em sua obra, na sua totalidade.
Tomando como exemplo, portanto, os Diálogos de Platão, o método imanentista de leitura e interpretação de textos desenvolvido por Benoit é, na verdade, muito simples. A ideia central consiste apenas em levar a sério a ordem material de exposição dos textos – a ordem ou a temporalidade da léxis – para nela colher as informações do autor a respeito de seu pensamento e de como situa a sua obra. Assim, o ponto importante para o método é salientar as ligações internas, de sentido, entre a exposição linguística (ou a léxis), a construção dessa ordem pelo autor, a ordem ou a temporalidade da poíesis, a organização e a evolução de suas próprias ideias, a ordem ou a temporalidade da nóesis e, finalmente, quando for o caso, as circunstâncias em que os textos surgiram, a ordem ou a temporalidade da gênesis. Assim, ao salientar a natureza interna das relações entre as diversas etapas de elaboração de uma obra, o método imanentista descarta qualquer elemento externo ao seu objeto e ao pensamento do autor.
No entanto, como frequentemente ocorre, a simplicidade nem sempre é o caminho mais fácil. De fato, basta um pequeno exercício de atenção à léxis para constatarmos várias informações importantes que colidem, frontalmente, com as interpretações tradicionais da obra de Platão, como nos mostra Benoit. Primeiro, a autoria dos Diálogos: o personagem Platão é mencionado, entretanto, poucas vezes, e em nenhuma delas se trata de uma menção que tenha maior relevância filosófica; segundo, a doutrina defendida pelo suposto “proprietário” dessa obra: muitos Diálogos não apresentam uma doutrina a ser defendida, mas, ao contrário, terminam de forma inconclusa; e, terceiro, a organização (diatáxis) dos Diálogos: se respeitarmos as informações fornecidas pela léxis, veremos uma datação dramática, interna aos Diálogos, portanto, que permite organizá-los sequencialmente e com bastante precisão.
Desde a Antiguidade, nas obras de autores como Diógenes Laércio e Proclus, tivemos acesso à informação de que o então jovem Platão era poeta, alguém que escrevia tragédias e obras líricas, mas, que ao conhecer Sócrates, teria então rasgado os seus versos juvenis, negado a arte, para apenas dedicar-se à verdade, uma vez que seria equivocado buscá-la junto de quem a imitaria, o artista. Esse pensamento antigo percorreu todo o neoplatonismo até chegar a Nietzsche e Heidegger, que, por sua vez, compartilhariam dessa ideia dos antigos ao atribuírem a Platão a responsabilidade pela ruptura da filosofia com a arte. Nesse sentido, então, Nietzsche e Heidegger estariam “acusando” Platão por meio de uma antiga tradição que critica os Diálogos por seu suposto ódio aos poetas e por terem sido, supostamente, o começo da chamada “cena da metafísica ocidental”. Mas, como interroga Benoit (2015), não seriam os próprios Diálogos uma bela trama sensível de palavras opostas? Os Diálogos não estariam, assim, muito distantes de um racional e solitário monólogo discursivo e muito mais próximos de um tecido conceitualmente poético, composto por múltiplos discursos, de inúmeros personagens históricos e reais, em uma época e em locais históricos e reais?
Por seu lado, essa longa tradição continua a interpretar arbitrariamente os Diálogos como obras narrativas. Quando analisamos mais detidamente, percebemos que as cenas que ocorrem nos Diálogos sempre contêm interlocutores e que as mensagens nunca são direcionadas primeiramente ao leitor, mas, sim, aos personagens presentes à discussão. O leitor é, assim, um dentre todos os ouvintes presentes à cena dramática, mas nunca o primeiro. Peguemos como exemplo A República. Ali, praticamente, apenas Sócrates fala e, portanto, interpretamos este Diálogo como puramente narrativo. Ora, se somente Sócrates se comunica sem interrupções, logo, está se comunicando conosco, os leitores, não? Pois bem, lendo atentamente os Diálogos em sua ordem, e sem nenhum (pré) conceito ou interpretação em mente, quando vamos ao Timeu, que na ordem lexical dos Diálogos ocorre no dia posterior ao d’A República, vemos que Sócrates não estaria se dirigindo a nós, leitores, mas, sim, a quatro integrantes que participavam em silêncio de seu enorme discurso. Eram estes: Timeu, Crítias, Hermócrates e um quarto personagem desconhecido.
Inúmeros exemplos como estes poderiam ser apontados aqui e, de fato, nos são demonstrados por Benoit em seu livro metodológico. Dessa maneira, são inevitáveis as discussões polêmicas do filósofo brasileiro com autores clássicos, sejam eles antigos, sejam eles contemporâneos. Benoit cita e destaca diversas passagens já muito conhecidas dos Diálogos, e o faz considerando-as em si e por si mesmas, contemplando-as à luz de sua léxis imanente e colocando-as em contradição com as interpretações dominantes que, em geral, leem os textos de Platão a partir de certa tradição, especialmente aquela que se tornou hegemônica com o neoplatonismo.
Quem sabe se nos abríssemos à possibilidade de nos aproximar, pouco a pouco, de uma situação que se parecesse àquela original inocência de um leigo que nada sabe a respeito de uma obra e um autor, pudéssemos encontrar, como afirma Moreno (2015), em sua apresentação à obra de Benoit, ao invés de extensas narrações conceituais, ou exposições de teses para se defender uma doutrina filosófica, muito mais reflexões conceituais e filosóficas elaboradas esteticamente, um gênero literário próximo a “uma espécie de romance filosófico, ou se quisermos, a uma ‘odisseia’ escrita por Platão”.
Referências:
BENOIT, Hector. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. 210 p.
MORENO, Arley. Apresentação. In: Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015, pp. 7-19.
[1] Doutor em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professor adjunto na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FACH/UFMS), no curso de Filosofia. e-mail: andre.almeida@ufms.br
[2] Professor do curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O texto é o décimo da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.
- Reflexões sobre a Prática Filosófica no Brasil, de Silas Miqueias da Silva, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/13/reflexoes-sobre-a-pratica-filosofica-no-brasil/.