Quando Martin Heidegger (1889-1976) publicou Ser e tempo, em 1926, a filosofia ocidental experimentou o descortinamento de oportunidades especulativas até então inéditas e inimagináveis. Era a primeira vez que, em uma tradição de mais de dois milênios, a filosofia se defrontava com a possibilidade de um pensamento ontológico radicalmente comprometido com a finitude e no qual o tempo se colocava não como uma categoria do ser ou do conhecimento, mas como a própria condição de possibilidade da compreensão de ser. Era a primeira vez que, conforme proposto no § 44 do livro, era possível fazer uma ontologia existencial fora do campo das verdades eternas.
Para lastrear a ideia de um tempo que operasse como condição da compreensão de ser[1], Heidegger ofereceu uma complexa teoria do tempo. Interessa aqui, principalmente, os três níveis ou estratos do tempo que essa teoria apresenta. Tomando como fio condutor nossa imersão normalmente espontânea nesses níveis, há um primeiro nível que pode ser chamado de tempo cotidiano. É o tempo das ocupações e preocupações, tempo no qual os seres humanos carregam baldes, cortam lenha e trabalham em cafeterias. Esse tempo prosaico é coordenado por uma primazia do presente. Nele, tudo se passa como se a perspectiva de Santo Agostinho fosse real: nossa atenção se estica entre o futuro e o passado que, a bem da verdade, são “futuro e passado” do presente – bem como o próprio presente é presente do presente.
Um segundo nível descoberto pelo pensamento de Heidegger é o do tempo histórico, da historicidade que se revela mediante uma atenção propriamente histórica e desde a qual é possível perceber e manejar as possibilidades herdadas pelos indivíduos lançados em mundos que já estavam aí, com suas estruturas e acontecimentos, antes de sua chegada. Nesse nível, o passado predomina.
Finalmente, há um nível mais profundo e que poderia ser chamado de tempo da resolução. É o nível mais fundamental e básico, desde o qual os outros níveis são coordenados e organizados. É nesse nível que se decide o estatuto e o peso dos outros níveis no horizonte de uma existência individual, pois esse é o tempo produzido pela orientação do indivíduo na direção de possibilidades existenciais reconhecidas e assumidas. É um tempo, portanto, organizado pelo futuro. É nesse nível da compreensão e da experiência do tempo que pode ocorrer a apropriação da existência por parte de alguém e, nesse sentido, uma vida humana pode se tornar autêntica. Todavia, se decidi chamar esse tempo de “tempo da resolução”, isso se deve ao fato de que, para Heidegger, a adequada sintonização com esse futuro, que do horizonte pode iluminar os outros estratos do tempo, depende de uma antecipação resoluta daquela que é a possibilidade mais própria dos seres humanos, a saber, a possibilidade da impossibilidade. O tempo originário é tempo de resolução porque é, em última instância, descortinado por uma antecipação resoluta da morte.
Arriscando uma temerária tradução da filosofia heideggeriana para uma linguagem ordinária, é possível dizer que o filósofo nos sugere que a grande abertura da possibilidade da vida autêntica se dá por meio de uma compreensão permanente de que viver é viver para morrer. Provavelmente, o próprio filósofo negaria que foi isso que ele quis dizer. Não obstante, parece ter sido isso que foi compreendido por alguns grandes leitores de sua obra. Jean-Paul Sartre (1905-1980), por exemplo, em O ser e o nada, disse que essa ideia de Heidegger sobre a morte é, como também a dos cristãos em geral, prestidigitação e trapaça. Para Sartre (2008), é possível esperar uma morte em particular, mas não a morte em geral.
Também Paul Ricoeur (1913-2005) parece considerar mórbida essa perspectiva heideggeriana que, em seu entendimento, não abre a possibilidade de uma vida autêntica, mas, pelo contrário, fecha todas as possibilidades, a partir de uma ideia de morte que drena o sentido e o valor de quaisquer possibilidades. É ao próprio Sartre, entre outros pensadores, a quem Ricoeur recorre como fonte de inspiração de ideias que confrontam a perspectiva “sombria” de Heidegger. Se estamos sempre projetados, lançados em possibilidades, essas possibilidades são possibilidades de viver, diz Ricoeur (2014), fazendo referência ao conceito sartriano de projeto existencial.
Sartre acompanha Heidegger de perto em muitos temas. Todavia, a instância que coordena a singularidade do projeto existencial pelo qual alguém se define não tem nada a ver com a interiorização da própria morte. Diferentemente do filósofo alemão, o filósofo francês entende que todos os esforços pessoais, todos os gestos, todas as pequenas e grandes ações, palavras e pensamentos de alguém são comandadas por um desejo de ser. Segundo Sartre (2008), há, em todas as pessoas, um profundo – e discretíssimo, já que na maioria das vezes não estamos adequadamente familiarizados com ele – desejo de ter, de uma vez por todas, uma identidade: um desejo de ser. Aparentemente, como no caso da noção psicanalítica de pulsão de morte, o desejo de ser, segundo Sartre, também é desejo de repouso, estabilidade[2]. Inconfundível com os pequenos desejos empíricos e concebido como estruturante de um estrato de tempo desde o qual estes se fundamentam, o desejo de ser é, em algum sentido, um desejo de vitória sobre o tempo. Entretanto, conforme afirmei anteriormente, há quase cem anos é difícil – e cada vez menos interessante – pensar filosoficamente longe da perspectiva na qual o tempo é o horizonte da compreensão de ser.
Proponho, portanto, em um talvez difuso e anacrônico espírito existencialista, que não só um debate entre as perspectivas de Heidegger e Sartre sobre a instância última de organização da experiência humana do tempo é pertinente, como também esse debate é de uma importância de primeira grandeza. Assumo, com Ricoeur, que o desejo de ser é uma noção mais fecunda, em termos de abertura para possibilidades existenciais, que a antecipação resoluta da própria morte. Admitindo, todavia, que há uma discreta e quase secreta pulsão de morte na noção sartriana de desejo de ser, entendo que a familiarização de alguém não só com os próprios fins pessoais, mas com as estruturas gerais da condição humana exige uma suave reelaboração conceitual.
Acompanho Heidegger na ideia de que há um tempo originário e profundo coordenando outros estratos de tempo. Porém, a resolução antecipatória precisa ser da própria morte? Não será o caso de admitir que o desejo – como bem o percebem perspectivas tão distintas quanto surpreendentemente assemelhadas como as de Jacques Lacan (1901- 1981) e René Girard (1923-2015) – singulariza mais – e talvez melhor – que a morte?[3] Modulando então a noção sartriana em um enquadramento heideggeriano, parece-me que a noção de desejo de ser é pertinente para designar os projetos existenciais pouco familiarizados, tanto com os próprios fins particulares quanto com as estruturas gerais da condição humana. Uma vez que se tenha feito a travessia das ilusões que espontaneamente nublam nossa compreensão de nós mesmos e da condição humana, parece-me que se torna mais adequado falar não mais em desejo de ser, mas em tempo do desejo.
Onipresente, mas por toda parte oculto, o tempo do desejo permeia nosso cotidiano, nossa consciência histórica e quaisquer outros estratos de tempo nos quais nos lancemos em ação, palavra ou pensamento. É nele que se configura nossa ipseidade – isto é, nossa radical singularidade e o caráter de insubstituível e único de nossas vidas – e é nele que se estrutura o que nos torna inconfundíveis, singulares, únicos. Uma familiarização com esse estrato estrutural do tempo envolve a compreensão de que a identidade definitiva – isto é, o ser definitivo – é uma miragem no horizonte da nossa espontânea projeção em possibilidades. Compreender a miragem enquanto miragem é compreender a existência singular como um jogo no qual só se ganha ou se perde na exata medida em que se aposta. Se a existência pessoal é um jogo, é um jogo muito sério, talvez o mais sério dos jogos, senão o único jogo realmente sério.
Mas a seriedade do jogo da existência não se confunde com o espírito de seriedade que satura a atmosfera da “má-fé” na qual vivem as pessoas dominadas pelo desejo de ser. A seriedade da existência sintonizada com o tempo do próprio desejo não é a seriedade das placas de sinalização. É a seriedade da leveza insustentável que paira sobre as escolhas, decisões e resoluções que se fazem em radical e profunda solidão. A consciência sobre o tempo do desejo, portanto, atenua o mal-estar concernente ao desejo que, ávido por ser, só encontra a impossibilidade de sua realização.
Essa atenuação é proporcionada pela familiarização do indivíduo com as estruturas existenciais que comparecem no momento de suas pequenas e grandes escolhas. Escolhas que precisam ser refeitas todos os dias desde esse nível profundo, originário, refratário ao conceito filosófico e desde o qual as vidas podem assumir a forma de uma sofrida errância dispersa ou, alternativamente, de uma errância que se traduz em autêntica e viva experiência de existir.
Referências
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Tradução do alemão de Renato Zwick; revisão técnica e apresentação de Tales Ab’Saber; ensaio biobibliográfico de Paulo Endo, Edson Sousa. Porto Alegre. RS: L&PM, 2016.
GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo, SP: É Realizações, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Traducción, prólogo y notas de Jorge Eduardo Rivera. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, s/d.
LACAN, Jacques. Escritos I. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zabar Ed., 1998.
RICOEUR, Paul. O si mesmo como outro. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
SOUZA, Thana Mara de.; MURTA, Claudia. O desejo nos pensamentos de Sartre e Lacan. Vitória : UFES, Secretaria de Ensino a Distância, 2017.
[1] Uma breve observação gramatical: por estranha ou pouco intuitiva que pareça, a expressão “compreensão de ser” é utilizada, no mundo dos estudos heideggerianos, no lugar de uma outra que, em linguagem ordinária, seria muito mais agradável, a saber, “compreensão do ser”. Há uma razão filosófica para isso: trata-se de assinalar que o verbo “ser” não designa, em Heidegger, um ente que cumpre a função de último item em uma cadeia de relações de fundamentação, isto é: em Heidegger, “ser” não é outro nome para Deus ou Absoluto, mas a dimensão ontológica de um ente particular qualquer. Ser é sempre ser de um ente, conforme a fórmula heideggeriana.
[2] Essa improvável aproximação entre o desejo de ser em Sartre e a pulsão de morte na psicanálise não é originalmente minha. Minha inspiração aqui é o trabalho de Thana Mara de Souza e Cláudia Murta (2017), no qual as autoras comparam as visões de Sartre e de Lacan sobre o desejo. Evidentemente, seria indispensável uma averiguação detalhada da pertinência dessa aproximação comparativa. Para o momento, reservo-me apenas a esse aceno provocativo que tem em mente apenas o aspecto de que, no existencialismo e na psicanálise, o desejo padece de um mal-estar congênito que o impele para a própria supressão, para o próprio desaparecimento.
[3] Na obra de René Girard, a teoria do desejo é desdobrada ao longo de seu Mentira romântica e verdade romanesca. No caso da obra de Jacques Lacan, sua teoria do desejo pode ser encontrada de forma mais diluída em seus escritos e seminários.
O artigo é o terceiro da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.