[Coautor: Weiny César Freitas Pinto][1]
Há cerca de três séculos, a filosofia, as ciências e as matemáticas, como as conhecemos hoje, viviam em uma relação bastante íntima e interessante. Falavam dos mesmos assuntos e discutiam os mesmos problemas. Uma mesma teoria conseguia trabalhar desde como nós, os seres humanos, conseguimos conhecer coisas do mundo e fenômenos da natureza até como podemos e devemos agir em sociedade. As conversas simplesmente fluíam, quase como se fossem, a filosofia e as ciências, uma só.
Com o passar de muitos anos, essa relação começou a mudar. As ciências começaram a se diversificar, as matemáticas se desenvolveram e passaram a se envolver muito intimamente com várias dessas ciências que nasciam, e a filosofia, no começo dessas mudanças, acompanhava-as com muito prazer. As matemáticas tinham já bastante vivência: sabiam lidar com mudanças e tinham o suficiente para se adaptar àquele mundo cheio de inovações tecnológicas e industriais. Já as ciências não tinham essa preparação. Elas ainda estavam se descobrindo e, embora soubessem para onde queriam ir e o que buscavam, eram constantemente surpreendidas com as novas descobertas que faziam. A filosofia, no seio de tantas novidades, não era mais “a mãe de todas as ciências” – ela estava ali, lado a lado com elas, dando todo apoio e procurando o fundamento de que precisavam.
Se alguém dizia que o fundamento absoluto do conhecimento eram as essências das coisas, logo outro alguém aparecia para dizer que essas essências não se justificavam, que elas não eram suficientes, pois não podiam ser alcançadas. Se alguém dizia que o fundamento absoluto do conhecimento eram então as próprias coisas do mundo, os fenômenos, então outro alguém dizia que as coisas, mesmo as mais simples, como a madeira, o ferro, o fogo ou o nascer do sol, precisavam ter algo “dentro” de si mesmas que as “ligassem” à mente humana e às suas capacidades cognitivas. Nada parecia ser suficiente para entender como o conhecimento era fundamentado.
No entanto, as ciências pouco se importavam com esse fundamento absoluto, uma vez que seu interesse estava voltado a apresentar novas tecnologias e descobertas para o mundo: as diferentes formas de energia, as mutações dos corpos animais e de suas espécies e as mudanças da matéria e suas inúmeras camadas microscópicas. As matemáticas começaram a trabalhar com as novidades que surgiam, adaptando e aprofundando sua linguagem, o que muito agradou às ciências, levando-as a começar a dialogar entre si e a divertirem-se juntas. Por outro lado, a filosofia tentava arduamente encontrar o fundamento do conhecimento, ao passo que explorava as novidades que as ciências e as matemáticas produziam, as quais foram construídas com o suor do trabalho em conjunto.
O mundo não parava de mudar drástica e velozmente. Revoluções industriais apareceram, fábricas e indústrias gigantescas surgiram e todos pareciam estar contentes com os avanços das ciências e das matemáticas. Todavia, não se pode pensar com isso que a filosofia “ficou para trás”: ela avançou aos poucos e trabalhou nos bastidores de todo esse processo. Diversas vezes tentou adaptar-se aos métodos das ciências e das matemáticas, mas a essa tentativa sempre encontrou muitos desafios, é claro, porque a filosofia trabalha com coisas muito diferentes das que trabalham as matemáticas e as ciências. Tornou-se, então, muito difícil falar filosoficamente dos mesmos assuntos de tão diferentes maneiras.
A filosofia, aliás, também passou a se identificar de diferentes formas. Junto à história, às ciências sociais, à psicologia e a algumas outras “ciências do espírito”, todas elas amadureceram e se interessaram por diferentes aspectos do mundo. Elas também se distanciaram umas das outras, como aconteceu com as ciências clássicas. Foi mais ou menos assim que a relação entre a filosofia, as ciências e as matemáticas, a qual já era muito íntima e que no passado tão bem fluía, foi, gradualmente, dissipando-se, a fim de dar origem a novas divisões do mundo epistemológico: as chamadas “ciências humanas” x “ciências naturais” x “ciências formais” (as matemáticas).
Atualmente, as ciências naturais e formais continuam a trabalhar em suas inovações e a apresentá-las ao mundo, concentrando-se em como produzir conhecimento e em como transformar resultados em métodos, realizando descobertas surpreendentes, por meio do inexplorado e, assim, produzindo e reproduzindo conhecimentos. Embora isso seja ótimo, não é suficiente, principalmente no que concerne aos aspectos humanos, visto que deixam muito ainda a desejar quanto à compreensão da situação humana no mundo, da vida em sociedade etc.
As ciências humanas, por sua vez, também conseguiram encontrar boas maneiras de lidar com seus objetos de conhecimento: os aspectos sociais. À filosofia, restou discutir um pouco sobre tudo e como as tão diferentes formas de conhecimento se relacionam, ficando em um espaço único entre todas as ciências.
Essa breve alegoria talvez demonstre um pouco do contexto geral de como a busca e a vontade de conhecer do ser humano se desenvolveram nos últimos séculos. O conhecimento, que antes estava presente em todos os assuntos, tornou-se cada vez mais específico, exigindo uma “divisão científica de trabalho” e tornando as ciências muito distantes entre si. A ampla visão das ciências em geral se perdeu: filósofos, cientistas e matemáticos, cada qual a seu modo, buscam por conhecimento e o veem penumbrado, sem poder maximizar sua perspectiva, isto é, cada um se atém à sua especialidade.
A pesquisa que fundamenta essa alegoria consegue apresentar alguns apontamentos sobre como a filosofia, em sua variante que tem como objeto o conhecimento – a epistemologia –, pode cumprir a função que falta às ciências e às matemáticas: esclarecer o caminho no qual elas trabalham, o para quê e o porquê trabalham tão arduamente (Vicente, 2021).
Ainda assim, cabe ressaltar que existem outras formas de conhecimento, algumas muito mais próximas da vivência humana que a forma do conhecimento científico, como, por exemplo, os conhecimentos adquiridos através da crença religiosa, da arte e/ou estética, do mito e, até mesmo, dos conhecimentos produzidos a partir do simples hábito cotidiano. Uma epistemologia que consiga trabalhar com outras formas de conhecimento e não apenas com o conhecimento científico pode fornecer às ciências em geral um tipo amplo de esboço do conhecimento e de como ele impacta a vida social, comum e cotidiana. Isso impõe, claro, algumas dificuldades: a área da filosofia, conhecida como “epistemologia”, tradicionalmente trabalha com a problematização do conhecimento científico e tenta aproximar as diferentes áreas das ciências, ao passo que analisa o desenvolvimento delas na história. Ora, ampliar sua atenção para outras formas de conhecimento e de pensamento que existem não necessariamente significa deixar as ciências de lado ou desbancá-las. Ao procurar entender como diferentes formas de conhecimento se desenvolvem, são apresentadas outras relações do pensamento e do conhecimento com o mundo, pois o conhecimento científico não é suficiente para a ordinária, simples e cotidiana vivência humana.
Referências
VICENTE, A. X. G. Epistemologia das Ciências Humanas: contribuições e notas. Campo Grande, MS, 2021. 98 f. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso – TCC) – Faculdade de Ciências Humanas (FACH), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em História da Filosofia Moderna e Contemporânea, com ênfase em Filosofia da Psicanálise e Epistemologia das Ciências Humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O artigo é o nono da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.
- A clínica analítico-comportamental é espaço para produção de conhecimento científico?, de Vanessa Borri e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/29/a-clinica-analitico-comportamental-e-espaco-para-producao-de-conhecimento-cientifico/.
- A arte, mãe do conhecer, de Davi Molina e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/05/a-arte-mae-do-conhecer/.
- As “humanidades” como fonte de resistência aos regimes autoritários, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/12/as-humanidades-como-fonte-de-resistencia-aos-regimes-autoritarios/.
- A “leveza” da violência, de Valdinei Ferreira Nunes e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/19/a-leveza-da-violencia/.
- Freud e a filosofia: sobre o tema da morte, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/26/freud-e-a-filosofia-sobre-o-tema-da-morte/.