Foram necessários quase sessenta anos para aprendermos como não se deve ler Freud. Temos muito pouco tempo de trabalho e muitos problemas.[1]
Presente nos debates das principais correntes da filosofia contemporânea, a psicanálise de Freud foi, e ainda é, objeto constante do pensamento filosófico. Do marxismo ao existencialismo, da fenomenologia ao estruturalismo, da hermenêutica à filosofia analítica, da filosofia da ciência à filosofia da mente, para onde quer que se olhe, os postulados freudianos são temas recorrentes em toda a literatura filosófica dos séculos XX e XXI. Representantes das principais tradições filosóficas contemporâneas têm dialogado com as ideias e teorias freudianas, ressaltando, portanto, a ampla e significativa repercussão da psicanálise no interior da filosofia.
Com efeito, se na tradição francesa, praticamente todos os filósofos do último século se confrontaram com a psicanálise, também na tradição alemã foram expressivos os trabalhos de apropriação do pensamento de Freud, o que não foi muito diferente em relação à tradição filosófica anglo-saxã. Atualmente, a recepção filosófica da psicanálise continua ainda bastante viva no interior dessas três tradições, incluindo autores como Butler e Cavell, Sloterdijk e Honneth, Vattimo e Agamben, além de Maldiney e Badiou, por exemplo.
Além disso, é significativamente relevante a produção dos filósofos brasileiros na área de filosofia da psicanálise. Nomes como os de Prado Jr., Monzani, Mezan, Gabbi Jr., Loparic, Stein, Japiassu, Garcia-Roza e Birman compõem o quadro geral do que poderíamos chamar de fundadores desta forte e crescente tendência da filosofia brasileira contemporânea, que tem na interdisciplinaridade da interrogação filosófica um de seus traços distintivos.
Mas o que explica este fenômeno, esta intensa e diversificada atenção filosófica dirigida à psicanálise? O que é exatamente “filosofia da psicanálise”? Por que, afinal, tomar a psicanálise como objeto do pensamento filosófico? Quais interesses da filosofia justificam suas severas críticas e seus muitos reconhecimentos a Freud e a seus sucessores? Qual concepção de filosofia é capaz de melhor absorver um pensamento como o de Freud e o dos demais teóricos da história da psicanálise? Que sentido novo podemos extrair dessa renovação constante da recepção filosófica da psicanálise? Quais são, enfim, os resultados e as consequências filosóficas mais radicais da interlocução entre filosofia e psicanálise?
O conjunto dessas questões retrata todo um programa de investigação teórica que originou, no Brasil, uma nova linha ou tendência de pesquisa no interior do campo de estudos das relações entre filosofia e psicanálise. Esta nova frente investigativa, caraterizada fundamentalmente pela abordagem histórica e metodológica, inaugurou o trabalho de sistematização de uma história e um método da recepção filosófica da psicanálise.
Todavia, se do ponto de vista geral a literatura é relativamente pródiga ao indicar vários modos distintos de relacionar filosofia e psicanálise, de um ponto de vista mais estrito, os trabalhos de sistematização histórica e metodológica dessa relação são ainda bastante incipientes. Isso quer dizer que, embora os temas da recepção e do método possam ser encontrados de forma fragmentada na literatura internacional, foi notadamente na pesquisa brasileira a respeito das relações entre filosofia e psicanálise que eles ganharam maior consistência e profundidade.
Inicialmente, essas relações se deram de forma tímida e dispersa naquilo que se consolidou entre nós como um variado campo de estudos chamado “filosofia da psicanálise” – campo surgido na década de 1980, que acabou por constituir-se em uma ampla e autêntica área de pesquisa da investigação filosófica nacional.[2] Em seguida, ao longo da última década, vimos os temas da recepção e do método se imporem como objetos de maior relevância e vigor, articulando-se de forma cada vez mais sistematizada. Com efeito, esses temas se converteram em problemas de pesquisas e, paulatinamente, tornaram-se objetos de análises e debates específicos no interior do campo da filosofia da psicanálise: eventos, iniciativas institucionais e publicações científicas – inclusive internacionais –, duas pesquisas de doutorado, uma investigação de pós-doutorado, um projeto de pesquisa interinstitucional (UFJF, UFMS, PUC-PR, Université Paul Valéry) e uma edição temática de periódico científico, publicada em dois volumes, são as expressões mais evidentes da forte vitalidade e do nível de sistematização atuais que esta nova linha de pesquisa – história e método da recepção filosófica da psicanálise – alcançou[3].
Este seria, em resumo, uma espécie de “estado da arte” desta nova linha de pesquisa. Como se vê, estamos apenas no início da consolidação de uma linha investigativa, que seguramente requer ainda muito mais estudos de precisão e de aprofundamento. Se, por um lado, já temos uma espécie de comunidade de interesse em torno à problemática central dessa nova tendência de pesquisa, por outro lado, falta-nos ainda atrair mais pesquisadores, ampliar referenciais teóricos, aprofundar hipóteses, aprimorar as circunscrições conceituais, formular e desenvolver a crítica etc.; ou seja, temos um ponto de partida, mas ainda estamos muito longe de qualquer ponto de chegada, embora saibamos onde queremos chegar.
Entre os nossos principais objetivos estão: i) a compreensão da recepção filosófica da psicanálise desde o ponto de vista de uma ampla análise histórica da relação entre as duas disciplinas; ii) a formalização, tantas vezes insinuada, mas nunca efetivada, de um método epistemológico extraído da experiência dessa relação; iii) a interrogação pelas consequências filosóficas mais radicais que tanto essa análise histórica quanto esse método epistemológico podem produzir.
Se foi necessário mais de meio século para aprendermos como não se deve ler Freud e mais quatro décadas para aprendermos como lê-lo, é, sem dúvida, chegado o momento de aprendermos como pensá-lo.
* Este texto é o resumo adaptado do editorial “História e método da recepção filosófica da psicanálise”, publicado em: FREITAS PINTO et al., 2021.
Referências
BIRMAN, J. Freud e a experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre Ed., 1989. 177p.
DI MATTEO, V. (Org.). Ressonâncias do pensamento freudiano na literatura filosófica. Recife: Mestrado em Filosofia da UFPE, 2003.
FULGÊNCIO, L.; SIMANKE, R. T. Apresentação. In: ______. (Org.). Freud na filosofia brasileira.São Paulo: Escuta, 2005.
FREITAS PINTO, W. C.; PADOVAN, C.; SIMANKE, R.; BOCCA, F. Editorial. Eleuthería, v. 6, n. 10, p. 6-12, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/reveleu/issue/view/666/474.
MEZAN, R. Rumo à epistemologia da psicanálise. In: A vingança da esfinge. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 43-60 (Texto original, 1983).
MONZANI, L. R. Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanços e perspectivas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 20, p. 134, 1988.
PRADO JR., B. Autorreflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud. Discurso, São Paulo, n. 14, p. 49-66, 1983.
[1] MONZANI, 1988, p. 134
[2] Sobre os temas específicos da história da recepção e da questão do método neste momento inicial, Cf., correlativamente, PRADO JR., 1983; MEZAN, 1995, p. 43-60; BIRMAN, J. 1989; e, mais notadamente, MONZANI, 1988; DI MATTEO, V., 2003; e, FULGÊNCIO, L.; SIMANKE, R. T., 2005. p. 5-12. São necessários ainda levantamentos mais detalhados a respeito desse mapeamento temático nos inícios da filosofia da psicanálise no Brasil.
[3] O leitor encontrará detalhes de todas essas iniciativas na versão integral do editorial aqui já mencionado.
O artigo é o nono da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.
- A clínica analítico-comportamental é espaço para produção de conhecimento científico?, de Vanessa Borri e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/29/a-clinica-analitico-comportamental-e-espaco-para-producao-de-conhecimento-cientifico/.
- A arte, mãe do conhecer, de Davi Molina e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/05/a-arte-mae-do-conhecer/.
- As “humanidades” como fonte de resistência aos regimes autoritários, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/12/as-humanidades-como-fonte-de-resistencia-aos-regimes-autoritarios/.
- A “leveza” da violência, de Valdinei Ferreira Nunes e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/19/a-leveza-da-violencia/.
- Freud e a filosofia: sobre o tema da morte, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/26/freud-e-a-filosofia-sobre-o-tema-da-morte/.
- Alegoria de um relacionamento: a filosofia, as ciências (humanas) e a matemática, de Allison Vicente Xavier Gonzales e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/03/05/alegoria-de-um-relacionamento-a-filosofia-as-ciencias-humanas-e-as-matematicas/.
Amante da psiquê humana sou do canal @psiquêemdia, psicólogo pós graduação em psicanálise clínica …formação. Breve …desejo atuar o mais breve possível…