Versões de uma mesma conversa. Conversar é a coisa mais refinada que há. Está disponível para qualquer um, mas não para um qualquer. Espírito, seja lá o que isso for. Hegel dizia que o Espírito era um osso! Qual, retrucava Dona Zélia, minha vizinha do Méier. Não importa.
Uma psicanálise é uma conversa, mas não qualquer conversa. E aí me lembrei de Bate papo, que não sai da cabeça. Resolvi partilhar. A composição é de Radamés Gnattali. Sutileza de chorinho, de samba, de jazz, de improviso, de suingue. Cobras criadas, os músicos.
Dia desses li no Google que só 5% da população mundial é formada por músicos. Ah, entendi muita coisa e não entendi nada, assumindo que a estatística esteja correta. Tanto barulho nesse mundo. Um barulho ensurdecedor até o limite da guerra.
Ucrânia tem ucranianos, Chernobyl e Clarice Lispector, a gente se esquece. Há séculos que os russos tentam dominá-los. O império russo de um lado e, de outro, “os latidos da Otan”, segundo o papa Francisco, de quem eu gosto por se assemelhar a um ser humano, algo cada vez mais fora de moda.
Além de terem fotografado o buraco negro, devorador de tudo, inclusive da luz, os cientistas descobriram que ele também tem um som. Agora mais essa, som de buraco negro. As descobertas espaventosas da ciência só me dão vontade de um bate-papo. Acompanhado de um “eu bebo pra ter argumento”, de Aldir, via Nana.
Radamés, ó, Senhor, que vi numa festa em Copacabana, na casa de minha madrinha, Hedinar Martins, uma das Três Marias, irmã de Herivelto Martins, Radamés é o cara do Bate papo. Radamés tentava namorar Nely Martins, cantora, que se derramava em prantos por um cadete que nem aí pra ela, e o Radamés insistindo, até que ganhou a mina, casou com ela. O edifício onde tudo isso acontecia – inclusive eu, entre duas meninas – ficava bem ali entre Copacabana e Ipanema/Arpoador. Puta cenário de uma memória que se esvai.
Antes que aconteça, Bate papo. A versão do Bate papo de Abel Ferreira, pai de Vania Ferreira, cantora, e de Leonardo Bruno, maestro, cutuca minha tristeza/melancolia, e me faz lembrar dos dias e noites maravilhosos que passei com eles ali na Rua Joaquim Nabuco, posto seis, quase Ipanema. Sons, saraus, bate-papos.
E aí chega Leo Gandelman, clareza no sax. Esticadas de notas, cantante. Suingando. Ajuda a ouvir notas que me passavam despercebidas. Põe na vitrine. Nailor Proveta, como se isso fosse possível, provê mais delicadeza ainda. Batendo papo.
Sou diz-feito de música. Amei ao som de João Gilberto. Dancei com Gilberto Gil. Pensei com Caetano Veloso. Solucei com Villa-Lobos. Chorei com Elis Regina. Sertanejei com Tom Jobim. Lutei por Moacir Santos. Americanizei com Carmen Miranda. Tive medo com Dorival Caymmi. Malandrei com Noel Rosa. Politizei com Carlos Lyra. Caminhando e cantando com Vandré, até que não, preferi a Disparada. Fui ao hospício visitar o preto velho no Francisco de Chico. Bebopei com Leny Andrade. Sarrei ao som do sax de Moacir Silva. Me angustiei com Sueli Costa. Cantei triste com a Gal. Ri com o humor negro de Vinicius. Criolei com Bosco e Clementina. Falseei com Roberto Carlos. Embolei com Manezinho Araújo. Jacksoulzei com Lenine. Senti frio e gargalhei no escuro com o Saci de Guinga e Paulo César Pinheiro. Byebyezei o Brasil que já não há com Chico Buarque e Menescal. Amarguei o Qui nem jiló de Dolores Duran. Vi as macacas de Emilinha na Rádio Nacional e as Marias com latas d’água na cabeça de Marlene.
Assobiei com Gismonti. Tomei um susto com Hermeto. Xaxei na Lua de Gonzaga. Saí na porrada ao lado de Gonzaguinha. Arabei no aboio de Fagner. Esquinei com Milton. Jazzifiquei na Melodia e nos arranjos de Luis. Benzi-me com Tins e Bens e tais. Dalvei e Heriveltonei na clássica separação dos amantes. Quis Teresa que não me quis na praia de Lucio e Dick. Ainda bem.
Brasileiro fiquei no Ponteio de Edu. Não esqueci o piano de Rosária Gatti. Vicente Celestiando nos olhos do meu avô. Na banguela desci com violão do Alemão. Cuiquei no Partido Alto de Airto. Fui ao Circo com Bethânia e Batatinha. Meu mundo caiu com Maysa. Mas fiz meu Outubro de homem, quase me afogando nas Águas de Março. Nó na garganta sim com o Hino Nacional e Ary Barroso. Agora, minha voz estremecida no Canta Brasil de Alcyr Pires Vermelho.
Vermelho de raiva, outubro vem aí. Sem Cazuza, nem cartão de crédito, nem navalha, nem Bete balanço, quem sabe balaço. Eles não sabem que sou seu irmão de longe. Não me queixo. Diz-feito de música. Pior seria se tivesse na Argentina nascido e visto de lá toda essa maravilha expatriado. Tango e lágrimas de esguicho no meio-fio sentado.
Esse texto me deu vontade de inventar versos..brisei com Johny Alf, pagodeei com Odilon Carlos, quarta-feirei com Luedji Luna;))))
Conversa mais boa
Maravilha de texto, feito per-feito de música.