[Coautor: Weiny César Freitas Pinto][1]
Democracia é um termo vago e relativo, na medida em que assume conotações diversas a depender de tempo e lugar. Parece claro que em Atenas, na Grécia antiga, a exclusão de mulheres, estrangeiros e escravos da condição de cidadãos delineava uma democracia muito mais restrita do que a democracia liberal implantada pela Revolução Francesa e, seguramente, da experiência parlamentarista europeia após a Segunda Guerra. A etimologia da palavra “democracia” (poder do povo) se aproxima mais das utopias do que de algo concreto pelo que se mereça lutar, mas essa ampliação da experiência democrática representa uma série de conquistas pelas quais vale a pena resistir. É muito mais do que o simples direito de votar.
O conceito de democracia aqui utilizado é intimamente ligado à noção de pacto civilizatório, em que a dignidade da pessoa humana e o pluralismo são valores inegociáveis e barram quaisquer formas de intolerância. Segundo Todorov, “ser civilizado significa ser capaz de reconhecer plenamente a humanidade dos outros, mesmo quando têm rostos e costumes diferentes dos nossos; significa também saber pormo-nos no lugar deles para nos vermos a nós próprios de fora” (2012, p. 113).
No Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, o atual amparo jurídico constitucional proporciona uma condição democrática superior àquela em que seres humanos eram equiparados à mercadoria como em outros tempos. A própria condição democrática brasileira se tornou mais ampla do que quando as mulheres não podiam votar, pois teve um importante avanço a partir do momento em que analfabetos e jovens com mais de 16 anos conquistaram o direito ao voto.
Entretanto, recentemente nos deparamos com a profunda vergonha do caso dos Yanomami. O Brasil, que se pretende civilizado, fundou-se no genocídio dos povos originários e, apesar de todo o avanço no estabelecimento de redes de proteção social, atualiza com esse lastimável episódio a inexistência do compromisso da sociedade para com os seus recursos naturais e histórico-culturais, e para com os seres humanos que aqui vivem. A sociedade que firmou seu sistema econômico primário-exportador na mão de obra escrava do negro não pode se reconhecer sem considerar a diversidade étnica que a compõe e sem discernir o sério problema da desigualdade econômica.
A história do Ocidente revela que, apesar do alargamento do cenário em que se desenvolve o espetáculo do exercício do poder político, houve inúmeros retrocessos e a lastimável incapacidade (ou desinteresse) dos atores em assegurar inclusão na proporção necessária à dignidade da cidadania plena por todos. Somente pode ser considerado democrático um ambiente em que se constate a mediação dos conflitos entre os diferentes. Para Touraine (1994, p. 269 e 277), é necessário se estabelecer uma cultura democrática a partir do reconhecimento do outro, na admissão da existência de conflitos de valores e da pluralidade de interesses. Um lugar de diálogo e de comunicação, para permitir que cada pessoa desfrute “da mais larga parte possível da experiência humana”. Assim, a democracia é o instrumento político de salvaguarda da diversidade numa mesma unidade social, pois ela possibilita a coexistência dos diferentes.
Por isso, quando determinado segmento político-eleitoral comporta-se como se estivesse em guerra e em lugar de disputa, apregoando a eliminação do inimigo ao invés do convívio com o adversário mediante o debate de ideias e da potencial vitória pelo voto, esse determinado segmento defende a integração das minorias à maioria, sob pena do seu afastamento do corpo social e dos processos políticos e econômicos. Tem-se, nesse contexto, a ostensiva ameaça a toda a estrutura institucional que assegura minimamente o pacto civilizatório, aquela que diferencia uma sociedade humanizada do bárbaro totalitarismo.
A experiência totalitária da Europa do século XX, tanto do nazifascismo, em que se espelhou a ditadura sangrenta do Estado Novo, quanto do stalinismo, que é modelo para regimes autoritários de esquerda, inclusive na América Latina, há de ser permanentemente lembrada em sinal de alerta. De acordo com Umberto Eco (2019, p. 42-61), o fascismo continua à espreita “sob as vestes mais inocentes” e é necessário “desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo”. Hannah Arendt (1989) já havia constatado que, após a Segunda Guerra, as potencialidades do totalitarismo tendiam a se tornar um risco permanente.
O messianismo populista de certos líderes, que incentivam em nome da própria democracia o ataque às suas colunas estruturantes, habitualmente agarrados ao postulado da liberdade de expressão e de manifestação, configura ameaça real ao pacto civilizatório. Nesse tocante, a garantia da liberdade não é prerrogativa para todo e qualquer tipo de opinião. Não se pode invocar a tolerância dos demais para pregar a intolerância. A liberdade de expressão não ampara o extremo de invocar publicamente um ideário incompatível com a dignidade da pessoa humana e com o pluralismo político, que são fundamentos da democracia.
Dessa forma, é gravíssimo quando se defende intervenção das Forças Armadas para solucionar questões de competência das instituições civis. O passo inicial para a violação do pacto civilizatório e da democracia é atribuir àqueles que a sociedade armou para sua defesa externa a prerrogativa de intervir nas questões de natureza civil do âmbito interno, a favor de um e contra outro determinado setor da vida político-partidária. Conforme aponta Bobbio (2022, p. 265), o que distingue um sistema democrático dos sistemas não democráticos é um conjunto de normas do jogo. Quando tal sistema despreza esse princípio normativo, degenera-se rapidamente em alguma forma de autocracia.
No Brasil, as Forças Armadas têm papel rigorosamente definido na Constituição Federal, e sua atuação excepcional prevista no propalado art. 142 não autoriza cogitar intervenção militar sobre a autoridade do Poder Civil constituído. É malévolo falar em intervenção militar, o que se intenciona é uma verdadeira vantagem para um golpe de Estado. As ideias que alimentam um projeto de golpe militar se materializaram de forma contínua e progressiva nos últimos anos, culminando com os acontecimentos de todos conhecidos desde o final das eleições de 2022 até o início de 2023. Onde o arbítrio se sobrepôs no lugar da supremacia de uma ordem legal legítima produzida no ambiente democrático, já se concretizou há muito tempo a ruptura do pacto civilizatório. Entre o vago conceito de democracia, as abstratas categorias da teoria geral do Estado e do Direito Constitucional, o funcionamento regular e legítimo das instituições e o direito à dignidade da pessoa humana, se estabelece uma entrelaçada teia de valores que, se desrespeitados, refletem diretamente na vida de muitos. Esses muitos podem ser invisíveis aos olhos de tantos de nós inseridos na estressante rotina da sociedade de consumo. Mas a indignidade afeta todos e cobrará sua conta.
Para defender esse sistema que visa ampliar direitos e proteção, concretizando os valores democráticos da dignidade da pessoa humana, temos que exercer permanentemente a capacidade de pensar e de discernir, evitando nos enredar na banalização do mal, de que falava Hannah Arendt. Apropriarmo-nos e exercer efetivamente nossa pensabilidade é rejeitar a transigência dos valores inegociáveis da dignidade em troca de um suposto mero viver e, assim, perseguir a plena experiência humana, inclusive por meio da humanidade do outro.
[Revisão de Pedro Silva e Bruno Ibanês; revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 18ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2022.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Tradução Eliana Aguiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
TODOROV, Tzevetan. Os inimigos íntimos da democracia. Tradução Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2012.
TOURAINE, Allain. O que é a democracia? Tradução Fernando Tomaz. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O artigo é o segundo da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira o outro artigo publicado:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.