[Coautor: Jonathan Postaue Marques][1]
Eis que nosso astro rei, o Sol, dá as caras como de costume e seu crepúsculo me desperta de um sono profundo trazendo consigo o ressurgimento da Aurora. A deusa do amanhecer na mitologia romana, a qual outrora, no ensaio Resistência à intolerância em grupos polarizados (FLAMIA, L. A.; PINTO, W. C. F., 2022, s/p), trajava-se com o véu de Maya, verde e amarelo, agora apresenta-se carregando uma cruz. Ligo a televisão, vejo o videoclipe da canção Rubão, obra de uma das minhas bandas preferidas, Charlie Brown Jr. O momento se desenrola exatamente na cena em que o personagem maltrapilho e sem dinheiro, interpretado pelo cantor Chorão, é atropelado por um carro de luxo. Percebo que o rapaz atingido se sente culpado por danificar o automóvel do proprietário, um senhor arrogante, que o agride fisicamente, destilando toda a sua raiva e insatisfação, como forma de vingança, punição e opressão. Enquanto contemplo a arte audiovisual, começo a refletir sobre essa cena violenta, sobretudo pelo sentimento de culpa e má consciência que afligiu o protagonista, sentimento que é reafirmado e pretendido pelo opressor.
Por que nos sentimos culpados por fatos sobre os quais não temos controle nem influência? Deveríamos alimentar a má consciência e a culpa diante de nossos desejos, vontades, prazeres, impossibilidades e dificuldades enfrentadas no mundo capitalista? A culpa é necessária para sermos bons ou ela é um problema? Como o sentimento de culpa surgiu nos seres humanos? Esse sentimento é intrínseco à nossa essência ou é algo que aprendemos mediante a experiência? O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) nos ajuda a responder a essas questões a partir da obra Genealogia da moral, na qual relaciona a questão da culpa e da má consciência a conceitos tais como: reparação, vergonha, vontade, relação entre credor e devedor, punição e religião.
Para Nietzsche, o conceito de culpa deriva do conceito de dívida, que remete a uma relação contratual, pela qual o devedor, a fim de inspirar crédito e confiança, penhora algo de sua propriedade como forma de garantia por uma eventual não quitação de sua dívida. Historicamente, reparações de dívidas não pagas, isto é, cobranças de quitação da dívida, variavam desde humilhações, perda da liberdade, torturas, morte, e até mesmo a não salvação da alma. Desse modo, o filósofo observa a bizarra lógica compensatória por meio da qual o credor pune o devedor em busca de satisfação.
Com o crescimento da espiritualização e da “divinização da crueldade”, fomentaram-se os sentimentos de vergonha e consternação do homem. O que angustiava Nietzsche é um tipo de sofrimento específico, ilógico, infundado e tolo, não o sofrimento humano em si mesmo. Segundo ele, os cristãos transformaram o significado de sofrimento, tornando-o tanto um meio de salvação como também uma justificativa para atos maldosos, ou seja, “sacraliz[aram] a vingança sob nome de justiça” (NIETZSCHE, 2020, p. 57). Antigamente, a finalidade do castigo era a represália, a ameaça ou a reparação, no entanto, tal sentido foi substituído por um disfarce espiritual e sagrado, tornando-se um “poder superior”. O castigo passou a despertar o sentimento de culpa e má consciência, além de colocar rédeas no comportamento humano, instigando a prudência, fato que não torna o homem bom (melhor), ao contrário, o reverte para ruim (pior).
Nietzsche compara a origem da má consciência a uma doença que o ser humano foi compelido a contrair. Seu início é comparado à tragicidade dos animais aquáticos pré-históricos: obrigados a escolher entre se transformarem em animais terrestres ou morrerem. Nesse processo, esses animais abdicaram de seus instintos naturais e foram compelidos a “carregarem a si mesmos”, pois já não contavam com ajuda da água para a locomoção. Contudo, seus instintos primários não deixaram de existir, foram apenas reprimidos. Esse fato, por analogia, ocorre com o ser humano quando a repressão e a proibição de nossos instintos selvagens, tais como a brutalidade, a impiedade e a satisfação pela destruição, não são exteriorizados, e voltam-se para o interior, inflando a alma humana. Para substituir a falta de inimigos externos, o homem acaba por agredir, insultar, magoar, punir e danificar a si mesmo, criando a má consciência. Surge então algo inédito na humanidade: o animal homem torna-se doente, sua alma torna-se revoltada contra si mesmo e sua má consciência o induz ao sofrimento.
A bizarra lógica compensatória – comentada anteriormente –, presente na relação contratual, foi redesenhada e introjetada de maneira inexplicável. Nas tribos, a crença de que sua existência enquanto ser vivo só é possível graças aos sacrifícios realizados por seus antepassados, fomenta um sentimento de dívida e medo, sentimento aumentado graças à sobrevida desses antepassados como espíritos supremos, considerados divindades. Dessa forma, como pagar essa dívida? Por meio de oferendas, celebrações, rituais, até mesmo sacrifícios e derramamento de sangue. Com a instituição do “deus máximo”, o Deus cristão, o sentimento de culpa atinge o seu ápice. Adão e Eva cometem o “pecado original” e o simples uso do livre-arbítrio compromete toda a humanidade, tornando os homens credores de Deus. E para quitar essa dívida, um xeque-mate do cristianismo, o próprio Deus se sacrifica e paga a si mesmo, por amor a seu devedor – o ser humano. Pronto, neste exato momento, a humanidade passa a ter uma dívida eterna com Deus. O homem está doente, sua vontade, ausente de sanidade, quer se flagelar, culpar-se e envergonhar-se. Por essa constatação, Nietzsche considera o homem um animal louco, infeliz e realizador de ações estúpidas.
Simultaneamente à reta final de minha reflexão, o videoclipe avança. Ao se retirar do local do acidente, o proprietário do “carrão” deixa cair uma carteira recheada de dólares. Como se estivesse curado da enfermidade, que é a má consciência, o rapaz atropelado – que nesse momento se apresenta com sua “vontade de potência” livre, saudável e sedenta por diversão – faz questão de gastar e aproveitar tudo o que aquele dinheiro pode proporcionar, e o melhor, não se sente culpado por isso. Assim como nesse enredo fictício, Nietzsche também vislumbra um melhor destino à humanidade, possível apenas por meio de um antídoto: o ateísmo.
[Revisão de Pedro Silva e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução Paulo César de Souza. 13ª reimpressão. São Paulo: Editora Schwarcz S.A, 2020.
FLAMIA, L. A.; PINTO, W. C. F. Resistência à intolerância em grupos polarizados. Ermira Cultura, 01 out. 2022. Disponível em: http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
JUNIOR. C. B. Rubão: Virgin, 2001. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4vibeaN0BG0&ab_channel=charliebrownjrVEVO. Acesso em 13 mar. 2023.
[1] Estudante do curso de Filosofia da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul). E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o terceiro da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.
- Democracia e a humanidade dos outros, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/11/democracia-e-a-humanidade-dos-outros/.