[Coautores: David Monteiro de Souza Junior[1] e Jonathan Postaue Marques[2]]
Historicamente, a química desenvolveu-se no escopo da filosofia natural, e como defende Ihde (1984, p. 5-8), ela tem elementos oriundos da medicina, metalurgia e alquimia, além de um caráter tecnocientífico proeminente em sua história disciplinar. Como ciência estabelecida e autônoma, a química é o amálgama entre conhecimento técnico e conhecimento científico, isto é, a razão de ser de uma tecnociência (VINCENT; MOCELLIN, 2021, p. 363-371). A filosofia da química se desenvolve tardiamente, no fim do século XX, como consequência do pragmatismo e do desinteresse metafísico dos químicos, aliados a uma visão reducionista (SCHUMMER, 2003. p. 37-41). Porém, as raízes históricas da química encontram-se na filosofia experimental de Robert Boyle (1627–1691), que, sob a influência de Francis Bacon, busca, a partir da experimentação, criar uma filosofia natural experimental, a qual ele denominou: química (IHDE, 1984, p. 1-31).
A intervenção na realidade por meio da experimentação e representação teórica dos fenômenos do mundo natural, como defendida por Hacking (1936), é típica da atividade química, e encontra lastro no medievo (2012, p. 39-58). Segundo o escritor C.S. Lewis, (1898-1963), a despeito das controversas teorias medievais, o modelo medieval guarda “elementos que os poetas e artistas podem muito bem aproveitar” (LEWIS, 2015, p. 31), um imaginário calcado na ordem moral e na ordenação da natureza. O filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947) comenta que a Idade Média é “um longo treinamento do intelecto da Europa Ocidental no que diz respeito ao senso de ordem” (2006, p. 26). É a fé medieval em um Deus racional que justifica a pesquisa da natureza com base na racionalidade do mundo criado.
O filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), em sua obra Novum Organum (1620), defendia que, para refundar as bases do empreendimento científico, antes calcada no aristotelismo medieval, se fazia necessário também compreender o homem a partir de uma nova ótica. Segundo o autor, o homem seria o intérprete, ministro da natureza, e também deveria se submeter às suas regras para poder conhecê-la. Bacon aponta que a experimentação é o fundamento do conhecimento sobre a realidade do mundo. A experimentação se faz necessária no processo investigativo da natureza porque a mente e os sentidos podem nos enganar, ou seja, de acordo com Bacon: “nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, alcançam muito” (1973, p. 33). O homem, munido de seu aparato intelectual e instrumentos experimentais, conheceria diretamente a realidade por meio da interação metodológica e rigorosa com o mundo externo à sua mente.
A refundação do modelo científico-epistemológico do século XVII está na mudança de posição do homem diante do universo. Agora, o ser humano não é mais um ser que contempla os fenômenos naturais como manifestação misteriosa de forças ocultas, e que através da experimentação “ingênua” associa de maneira causal as forças místicas e os fenômenos naturais – como no medievo –, mas é alguém que através da percepção racional investiga o mundo pela observação e com base na experimentação rigorosa. Portanto, o ser humano não é mais dominado pela natureza, é ele quem a domina. É desta maneira que Robert Boyle (1627–1691) afirma a relação entre o homem e a natureza em Ensaios Fisiológicos e outros Tratados (1669, p. 23-24):
Alguns homens importam-se apenas conhecer a Natureza, outros desejam comandá-la: ou, para expressá-lo de outra forma, alguns desejam apenas agradar-se pela descoberta das causas dos fenômenos conhecidos, e outros seriam capazes de produzir novos, e trazer a natureza para ser úteis aos seus Fins particulares, sejam de saúde, ou riquezas, ou deleite sensual.
Boyle, fundador do pensamento químico, foi um dos principais filósofos naturais da Inglaterra do século XVII, e figura central na formação do Invisible College e da Royal Society (RUSSELL, 2004, p. 89-109). Ele segue os passos filosóficos de Francis Bacon e, segundo Zaterka (2004, p. 145), Boyle é um químico que arquiteta novas teorias a partir da experimentação, de modo que a prática química seja protagonista. Em sua obra, aponta para a importância da experimentação, afirmando que as verdades provenientes da experiência são relevantes e de grande interesse para a humanidade. A filosofia experimental seria o caminho para o domínio e a compreensão da natureza, mas isso não contrasta com a sua visão teológica. Segundo Zaterka (2004, p. 53), “Boyle construiu um empreendimento epistemológico levando em consideração o plano divino da criação, o bem-estar do próximo e, é claro, a estrutura do mundo natural.” De seu trabalho experimental surge a “Lei de Boyle”e a construção de instrumentos e o desenvolvimento de técnicas químicas (ATKINS, 2018). Ainda segundo Atkins (2002), a Lei de Boyle afirma que, “para uma quantidade fixa de gás em temperatura constante, o volume é inversamente proporcional à pressão”. Ela pode ser exemplificada pela seguinte equação: V1 = p2. V2. Boyle cria essa lei após estudar os efeitos da pressão e o volume de gases.
O historiador da ciência Steven Shapin (2013, p. 92) argumenta que, de acordo com Boyle, a forma de validação do conhecimento químico experimental se dá por meio da construção de matérias de fato, sendo, pois, uma maneira de difundir o conhecimento experimental entre as testemunhas dos experimentos e a comunidade científica da época. Shapin aponta que “a matéria de fato era ao mesmo tempo uma categoria epistemológica e social” (2013, p. 92). A filosofia experimental de Boyle torna a química uma ciência que possibilita conhecer as nuances da natureza, a química é “um conhecimento que altera a matéria e altera as relações entre os corpos, portanto, um conhecimento que tem mando sobre a natureza” (ZATERKA, 2004, p. 147), aí se encontra a grande chave para o desenvolvimento da química na era moderna e posteriormente no mundo contemporâneo.
Sob a ótica de Robert Boyle, a filosofia experimental é a prática que possibilita o conhecimento científico, o domínio da natureza e consequentemente o avanço em favor do bem-estar da humanidade, de maneira a expressar o amor e a devoção a Deus. A experimentação, a organização arquitetônica do laboratório, a construção de instrumentos para manipulação química – como fornos e destiladores –, além do desenvolvimento de técnicas modernas de análise da matéria, como a espectroscopia, torna o local de trabalho dos químicos o centro de convergência entre tecnologia e ciência na construção de objetos químicos que ampliam nosso entendimento sobre a realidade do mundo material.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
ATKINS, P. e LORETTA, J. Princípios de química: questionando a vida moderna e o meio ambiente. Porto Alegre: Bookman, 2018.
BACON, F. Novum Organum & Nova Atlântida. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BOYLE, R. Certain physiological essays and other tracts written at distant times, and on several occasions by the honorable Robert Boyle; wherein some of the tracts are enlarged by experiments and the work is increased by the addition of a discourse about the absolute rest in bodies. Londres, 1669.
HACKING, Ian. Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.
IHDE, A. J.; The Development of Modern Chemistry. New York: Harper & Row, 1970.
LEWIS, C. S. A imagem descartada: para compreender a visão medieval de mundo. São Paulo: Realizações, 2015.
RUSSELL, C. A. Correntes cruzadas: interações entre ciência e a fé. São Paulo: Hagnos, 2004.
SHAPIN, S. Nunca Pura: estudos históricos de ciência como se fora produzida por pessoas com corpos, situadas no tempo, no espaço, na cultura e na sociedade e que se empenham por credibilidade e autoridade. Fino Traço. Belo Horizonte, MG, 2013.
SCHUMMER, J. The philosophy of chemistry. Vol.27 No.1, Endeavour, 2003. p. 37-41.
VINCENT, B. B.; MOCELLIN, R. C., Filosofia da química e dos materiais: entrevista com Bernadette Bensaude-Vincent. Em Construção: arquivos de epistemologia histórica e estudos de ciência, n. 10, 2021, p. 363-371.
WHITEHEAD, A. N., A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006.
ZATERKA, L. A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle. Editora Humanitas. São Paulo, 2004.
[1]Doutorando em química pelo Instituto de Química da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: davd.prof.quimica@gmail.com
[2]Professor de Filosofia da SED/MS – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o quarto texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/