[Coautores: Weiny César Freitas Pinto[1]e Pedro H. C. Silva[2]]
Observa-se, em nível mundial, uma grande transformação demográfica. O envelhecimento populacional apresenta-se como um fenômeno da contemporaneidade, que, mesmo passível de comemoração, carrega consigo grandes desafios sobre os quais espera-se, entre outras, a contribuição da produção do conhecimento em psicologia. O presente ensaio pretende refletir sobre as relações biológicas e subjetivas do processo de envelhecimento, sobre os conceitos de velhice e envelhecimento e, por fim, sobre como a psicanálise pode contribuir para a compreensão desse sujeito que envelhece.
De modo geral, pode-se definir o envelhecimento como um processo de alteração dos padrões fisiológicos ao longo do tempo, o qual vivenciamos desde o nascimento, de maneira progressiva, dinâmica e irreversível. A velhice é biologicamente marcada por acentuadas reduções e pela modificação de diversas funções (Silva, 2018). No entanto, outros fatores precisam ser considerados nesse processo e que influenciam direta ou indiretamente sobre como ele ocorre. Para citar alguns: os aspectos culturais, sociais, subjetivos, climáticos, alimentares, econômicos, dentre outros, que interferem de maneira determinante sobre como se dá a vivência do envelhecimento (Silva, 2018). Por isso é que estabelecer uma idade específica para o início da velhice implica alguns equívocos, uma vez que não se trata de um processo homogêneo. Porém, utiliza-se como referência os 60/65 anos, momento em que os declínios físicos e mentais mais se acentuam (Silva, 2018).
O envelhecimento e a vivência da velhice resultam da forma como se viveu e se vive. Com efeito, o que nos interessa aqui diz respeito à experiência subjetiva desse processo, tal como a psicanálise o aborda, já que dispõe de elementos teóricos e metodológicos que nos auxiliam a pensá-lo, uma vez que, desde os seus primórdios, ela surgiu como um novo modo de pensar a cultura e a condição do homem nela (Silva, 2018).
Jack Messy, psicanalista francês, em seu livro A pessoa idosa não existe, afirma que tanto a guerra quanto a velhice colocam o sujeito em uma outra posição diante da morte e, consequentemente, diante da vida e do próprio desejo (1993). Para Messy, o lugar de velho é ocupado pelo olhar do outro, normalmente o outro mais jovem, no âmbito social ou familiar – “toda coletividade, confraria, corporação tem seus veteranos. Somos sempre o velho de alguém” (Messy, 1993, p. 8). A palavra velho em francês, vieux, contém as palavras vida – vie – e eles – eux, apontando para alguém de maior idade, ainda que por pouca diferença ou que apresente traços mais envelhecidos. Ou seja, o sujeito percebe o seu envelhecimento também nessa relação, pela imagem que o outro lhe devolve, pela relação com seus outros velhos e pelos efeitos do discurso cultural a respeito da velhice e dos velhos. A velhice é o momento em que o fantasma da eternidade encontra um limite, até então ignorado pela libido, por sua convicção narcísica de imortalidade do eu.
A morte, do ponto de vista metapsicológico, impõe uma ferida narcísica aos sujeitos, uma vez que coloca uma tensão entre o eu e o isso (Mucida, 2019). O eu tem consciência da finitude e da morte, enquanto o isso o ignora. O aparelho psíquico entra em um conflito de finitude entre a temporalidade do eu e a atemporalidade do isso, seja pela ideia de morte real, seja pela impossibilidade de se adiar a realização do desejo. O encontro com o irremediável revela a perda de algumas possibilidades de realização e desperta os futuros não cumpridos (Mucida, 2019).
Para Délia Goldfarb (1998), grande pesquisadora brasileira nas áreas de gerontologia e psicanálise, a tomada de consciência sobre o processo de envelhecimento ocorre quando o sujeito passa a ter de elaborar as perdas que dele decorrem. Seja pela perda parcial de alguma funcionalidade física, seja pelo surgimento de enfermidades, seja pelas características visíveis de alterações no corpo, seja pelos novos papéis sociais destinados a certa faixa etária, dentre outros. Alguns fatores, por exemplo, sentidos como extrema violência pelo sujeito, já podem indicar o despojamento de uma posição antes ocupada. De certa forma, uma espécie de fase do espelho negativa (Goldfarb, 2006), na qual o reflexo de si, junto ao olhar do outro, não aponta para novas possibilidades, mas sim para certo declínio físico, perda de valor social e uma maior aproximação da morte.
Segundo Cocetino e Vianna (2011), o luto pode ser entendido como um afeto impactado pela perda de um objeto de investimento libidinal, o qual não precisa, necessariamente, ser uma pessoa. Em Luto e melancolia (1915/1996), Freud observa que o luto se caracteriza por uma inibição egoica e, como consequência, por uma dolorosa falta de ânimo, pela perda de interesse pelo mundo externo e pela capacidade de amar, bem como por uma limitação de atividades. Os sucessivos lutos, os forçados desinvestimentos objetais, muitas vezes insubstituíveis, provocam marcas egoicas importantes: “o ego é constituído de imagens de objetos investidos e cada perda o ameaça diretamente de ressecamento ou esfoliamento imaginário” (Messy, 1993, p. 12).
Novos investimentos, no entanto, são possíveis e, consequentemente, novas aquisições egoicas também, principalmente se considerarmos que as privações da imagem do objeto investido podem colocar o sujeito em movimento na busca de substitutos. A própria dor do luto, em certa medida, corresponde à dor pela necessidade de abandonar uma posição libidinal e criar outra, ou seja, “desamar” o objeto perdido e amar outros objetos (Cocetino; Viana, 2011). Isso demonstra que o ego também envelhece, já que é onde a dinâmica entre investimentos e desinvestimentos ocorre. Além disso, o que define se o passar do tempo trará mais perdas ou aquisições é, justamente, a experiência subjetiva (Mucida, 2019). Nesse sentido, a psicanálise pode estabelecer uma ponte entre aquilo que se foi, o que se é e o que se pode vir a ser (Santos et al, 2019). As perdas e as frustrações da velhice se relacionam, são frutos das vivências ao longo de uma vida e carecem de elaboração, ainda que de forma “tardia” (Cherix, 2015).
O processo analítico permite a inscrição no tempo daquilo que é atemporal e imutável. Presentifica, atualiza e promove o laço entre passado, presente e futuro, abrindo, principalmente, a possibilidade de que algo se inscreva de outra forma. A velhice seria o encontro do sujeito com o real do tempo, que exige, muitas vezes, a construção de algo em torno desse “buraco”. Ainda que a velhice carregue consigo o desamparo de forma mais incisiva, o desejo não se mede pela idade cronológica, mas se sustenta pelas relações do sujeito com os objetos (Mucida, 2019).
O envelhecimento populacional é um fato, assim como o são as demandas emocionais e subjetivas específicas dessa população. Estamos diante de um grande fenômeno mundial que precisa ser considerado, e a psicanálise pode contribuir significativamente para essa consideração.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
REFERÊNCIAS
CHERIX, K. Corpo e envelhecimento: uma perspectiva psicanalítica. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v. 18, n.1, p.39-51, jun. 2015. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v18n1/v18n1a03.pdf. Acesso em: 16 de jul. 2023.
COCETINO, J. M. B.; VIANA, T. de C. A velhice e a morte: reflexões sobre o processo de luto. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, v. 14, n.3, p. 591-599, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbgg/a/N4RRgjPh4xxPLxz6Nf8rFSv/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 18 jul. 2023.
FREUD, S. (1917 [1915]). Luto e Melancolia. em Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GOLDFARB, D. Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
GOLDFARB, D. Demências. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
MESSY, J. A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. São Paulo: Aleph, 1993.
MUCIDA, Ângela. O sujeito não envelhece: psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
SANTOS, A. da S. et al. Sobre a psicanálise e o envelhecimento: focalizando a produção científica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 35, p. e35423, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ptp/a/9Vztht9HD4LHdv6RmrTTnPt/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 16 de jul. 2023.
SILVA, J. M da. A clínica psicanalítica com idosos: uma construção. Estud. Psicanal. Belo Horizonte, n. 49, p. 115-123, jul. 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ep/n49/n49a11.pdf. Acesso em: 18 de jul. 2023.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[2] Graduando em Filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
O artigo é o 16º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.
- A questão da tirania em La Boétie, de Lucas de Miranda Aguilar e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/02/a-questao-da-tirania-em-la-boetie/.