[Curadoria Luís Araujo Pereira]
[1]
VI
Cristal dos meus prazeres, corrompido.
A ponta fina do desejo, gasta.
A fosca transparência do que há sido
refração de viver, na essência vasta.
Câncer sub-reptício, tempo que arde.
Remorso vegetal de minha vida.
Semente da manhã que se faz tarde.
Árvore do que sou, não florescida.
Fosse esse céu de abril de todo o ano,
fosse tudo o outono de um só dia
verde e feroz. Quem não desejaria?
Primas águas, abril, meu claro engano.
Sede imóvel, prendei o tempo. Ou dai-o
em dulçores, primícias do que é maio.
Dez sonetos sem matéria (1960)
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Noten zur dichtung 2
As ideias são como sombras
As palavras são como cobras
Nada ilumina nem descobre
Tudo morde: é veneno e sono
O poético é como a lesma
E a melódia é como o visgo
Nada muda: é a mesma receita
Tudo é concreto e tudo é símbolo
Os conceitos são escorpiônicos
Que se ferram porque letais
Os poetas meros espiões
Preocupados com as chaves
As ideias são morcegos cegos
As palavras são caramujos
Nada é claro nem se revela
Pois tudo é nada e nada é tudo
Cortes/toques (1983-1988)
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Biografia de uma ideia
ao fascínio do poeta pela palavra
só iguala o da víbora pela sua presa
as ideias são/não são o forte dos poetas
ideias-dentes que mordem e se remordem:
os poemas são o remorso dos códigos e/ou
a poesia é o perfeito vazio absoluto
os poemas são ecos de uma cisterna sem fundo ou
erupções sem larva e ejaculações sem esperma
ou canhões que detonam em silêncio:
as palavras são denotações do nada ou
serpentes que mordem a sua própria cauda
Antilogia (1979)
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[4]
Alma, corpo, ideias
Colchão paciente,
em ti deponho
o que aspirei.
Não o que sei,
nem o que disponho:
claridade presente.
E o que aspirei? Nada.
Atravessar a rua,
dobrar a esquina,
palpar uma felina
pele, matéria nua
e alucinada.
A alma se dispensa
em leito macio,
e o corpo cansado
entrega-se ao passado.
Alma: é como um fio,
mas o corpo é que pensa.
Dez exercícios numa mesa sobre o tempo e o espaço (1958-1962)
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Um outro
(quando acordo no entressono vejo-me
como se estivesse fora de mim mesmo
é uma espécie de susto:
ali estou eu
parado como se fosse um outro
contratado para cometer um crime
quero voltar para dentro do sono
dentro do subsolo da mente
onde me jogo
e me dissolvo
e me abandono)
A espreita (2000)
Sebastião Uchoa Leite nasceu em Timbaúba (PE) em 31 de janeiro de 1935 e morreu no Rio de Janeiro em 27 de novembro de 2003. Na Universidade Federal de Pernambuco, graduou-se em Direito e Filosofia. Foi colaborador do suplemento literário do Jornal do Commercio. Em 1960, publicou Dez sonetos sem matéria, seu primeiro livro de poemas. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1965, onde desenvolveu intensa atividade de tradutor, transpondo para o português obras de Julio Cortázar, Lewis Carroll, Stendhal, François Villon, entre outros, merecendo em duas ocasiões o Prêmio Jabuti na categoria Tradução. Juntamente com Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss, trabalhou na organização de enciclopédias. Ao lado de Luís Costa Lima e Gastão de Holanda, editou dez números da revista José, que divulgou poetas modernistas, marginais e concretistas. Além de ensaios, publicou os seguintes livros de poemas: Dez sonetos sem matéria (1960), Antilogia (1979, Prêmio Jabuti), Isso não é aquilo (1982), Obras em dobras (1960-1988, poesia reunida e acrescida de Dez exercícios numa mesa sobre tempo e espaço, Signos/gnosis e Cortes/toques), A uma incógnita (1991), A ficção vida (1993), A espreita (2000), A regra secreta (2002) e Crítica de ouvido (2003). Segundo o ensaísta João Alexandre Barbosa (1937-2006) , sua poesia é “de intensa visualidade, e por ela passam filmes, quadros, gestos, olhares.” Ele afirma ainda: “como Paul Valéry, [ele sabe] que o poema é lugar de convergências sob o império das incertezas da linguagem. Deste modo, não há fissura entre o olho e a ideia: a convergência é dada, por exemplo, nas páginas acerca da felinidade, seja da mulher, seja das ideias que representam, em filmes lidos pelo poeta. Felino e mulher: cria-se, no texto, o intervalo para que o leitor possa ler mais do que um ou outro separadamente. O que os articula chama-se linguagem da poesia. Mas é uma articulação sempre precária: entre a ordem e a desordem o poema cria a ilusão da estabilidade, logo ultrapassada pelo que há de instável na linguagem com que é construído” (in Obras em dobras, São Paulo: Duas Cidades, 1988).