[Coautor: Flávio Amorim da Rocha[1]]
No início do mês de março de 2024, o livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, foi motivo de polêmica entre as massas conservadoras do país. A obra, ganhadora do Prêmio Jabuti em 2021, foi aprovada e inserida no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), porém, foi banida das bibliotecas e escolas públicas dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás, com a justificativa de conter linguagem “chula” e “imprópria” para estudantes do Ensino Médio. Considerando que, no Brasil, a leitura já se revela como atividade impopular e analisando as consequências que advêm deste fato adicionado à censura, observa-se que esta surge mais uma vez como grande retrocesso para a sociedade brasileira.
Primeiramente, é importante enfatizar que o exercício da leitura é essencial para o desenvolvimento de um indivíduo, tanto para suas habilidades cognitivas e biológicas quanto para a formação do caráter e do pensamento crítico. A publicação dos Retratos da Leitura no Brasil[2] indica que o índice de leitura no país é baixíssimo: em média, o brasileiro lê quatro livros por ano, considerando que 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro. Além disso, dos 52% que se dedicam à leitura, a maioria prefere textos jornalísticos e religiosos. Portanto, qual é o lugar da literatura? E, em comparação com a literatura estrangeira, onde está a literatura brasileira? Parece-nos que em um espaço cada vez mais reduzido. Se observarmos o ranking das obras mais vendidas no país neste ano de 2024, encontramos apenas um título nacional[3].
Certamente, a censura se mostra como forte agente que impacta no desinteresse pela leitura, a exemplo da distopia de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, na qual, por ordem governamental, a leitura é proibida, livros são queimados e a população tem como única fonte de entretenimento os televisores. Como resultado, obtém-se a revelação de uma comunidade massificada e entorpecida, que deixa de exercitar o pensamento crítico.
Neste sentido, é pertinente destacar o período da Ditadura Militar (1964-1985), em que temos o retrato da sociedade brasileira extremamente fragilizada, visto que a censura era violenta e aliada à tortura. Além disso, foram vetadas cerca de 200 obras literárias e um número descomunal de canções, peças de teatro, filmes, entre outras manifestações artísticas. A título de exemplificação, citamos a obra Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, coletânea de contos que trata de temas como violência e conflitos entre classes sociais, problemas que se encontram no âmago social do país, que foi publicada em 1975 e censurada no ano seguinte por “ameaçar a moral e os bons costumes da família brasileira”.
De fato, a censura não executa a função de proteção; contrariamente, agrava o cenário por completo. Assim como no romance de Bradbury, a proibição do acesso à literatura adoece a população, que se torna incapaz de questionar a conjuntura em que se encontra e torna-se extremamente manipulável.
Consequentemente, a proibição de um livro tal qual O avesso da pele, que expõe o racismo estrutural, uma das maiores deficiências da sociedade brasileira, faz parecer que retornamos sempre a um modo de pensamento muito valorizado ao longo dos anos por uma elite conservadora (sobretudo durante a ditadura), que não se preocupa com as questões sociais de modo geral e prefere atentar-se à superficialidade, para a construção de uma sociedade polida, branca, e supostamente destituída de conflitos, que esconde, entre suas raízes problemáticas, a ridicularização e a exploração de corpos negros.
Em suma, é visível a representação da censura como um passo em direção ao passado, em que o preconceito é tão somente uma situação corriqueira, imutável e incontestada. À vista disso, é primordial destacar o papel da literatura de provocar reflexões e questionamentos, a fim de que a nossa coletividade nacional se mantenha em constante exercício de diálogo para que possamos progredir como corpo social, sempre. Posto isso, trazemos a voz de Jeferson Tenório que, em entrevista ao G1[4], defende que “[…] deveríamos estar preocupados em formar leitores e não censurar livros”. Ora, se é desejável a constante evolução da sociedade brasileira, é notório que a literatura brasileira deve ter e deve poder ocupar seu espaço, e definitivamente a censura não é o caminho para realização desse objetivo.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Biblioteca Azul, 2012.
FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. São Paulo: Nova Fronteira, 2020.
TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
PLATAFORMA PRÓ-LIVRO. Retratos da Leitura no Brasil – 2019. Disponível em: plataformaprolivro.org.br. Acesso em: 05/06/2024.
PORTAL DA LITERATURA. Top 10 de vendas no Brasil – 2024. Disponível em: portaldaliteratura.com/top10. Acesso em: 05/06/2024.
GLOBONEWS.Em Ponto entrevista: Jeferson Tenório, autor de “O avesso da pele” – 2024. Disponível em: g1.globo.com/globonews/globonews-em-ponto/video/em-ponto-
entrevista-jeferson-tenorio-autor-de-o-avesso-da-pele-12406179.ghtml. Acesso em: 5. jun. 2024
[1] Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira e Língua Inglesa do Campus Campo Grande do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: flavio.rocha@ifms.edu.br
[2] Fonte: http://plataforma.prolivro.org.br/retratos.php. Acesso em: 05/06/2024
[3] Fonte: portaldaliteratura.com/top10. Acesso em: 05/06/2024
[4]Fonte:https://g1.globo.com/globonews/globonews-em-ponto/video/em-ponto-entrevista-jeferson-tenorio-autor-de-o-avesso-da-pele-12406179.ghtml. Acesso em: 05/06/2024
O artigo é o sétimo texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.