[Coautora: Paula Entrudo[1]]
Existem algumas dúvidas que permeiam o campo filosófico no que se refere à metodologia de abordagem de textos: posso ler apenas autores que gosto? Devo considerar algum critério nessa leitura? É necessário levar em conta o contexto histórico desses autores, ou isso é irrelevante para compreender filosofia? Gostaríamos de apresentar neste ensaio duas concepções contrastantes a respeito desses questionamentos, a de Victor Goldschmidt e a de Hebert Marcuse.
Victor Goldschmidt, que trata o assunto em seu texto Tempo histórico e tempo lógico na interpretação de sistemas filosóficos, tema de uma conferência ministrada por ele, e que no Brasil aparece como apêndice do seu livro A religião de Platão (1970), expõe dois métodos de abordagem de textos filosóficos: i) o método dogmático e ii) o método genético. Esses métodos estão interligados a uma dupla temporalidade, à qual ele denomina tempo lógico e tempo histórico. Goldschmidt identifica que o método dogmático, do tempo lógico, é o mais eficaz para interpretar a filosofia, pois esse método estabelece o conceito exposto pelo filósofo como prioridade. De acordo com ele, “A filosofia é explicitação e discurso” (GOLDSCHMIDT, 1970), e cabe ao intérprete manter-se fiel a essa explicitação, sem distrações ou questionamentos que o direcionem a pensar o que o filósofo não está explicitando.
O primeiro método é eminentemente filosófico: ele aborda uma doutrina conforme a intenção de seu autor e, até o fim, conserva, no primeiro plano, o problema da verdade; em compensação quando ele termina em crítica ou refutação, pode-se perguntar se mantém até o fim o problema da compreensão. (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 139).
Por sua vez, o método genético, do tempo histórico, consiste em descrever a vida e a obra dos filósofos de maneira cronológica. Nesse caso, o conceito filosófico não aparece necessariamente como prioridade, mas fazendo parte da história e do contexto social dos autores. Em suas palavras, o método genético:
[…] considera os dogmas como efeitos, sintomas, de que o historiador deverá escrever a etiologia (fatos econômicos e políticos, constituição fisiológica do autor, suas leituras, sua biografia, sua biografia intelectual e espiritual etc.). […] A interpretação genética, sob todas as suas formas, é ou pode ser um método científico e, por isso, sempre instrutivo; em compensação, buscando causas, ela se arrisca a explicar o sistema além ou por cima da intenção de seu autor. […] (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 139).
Apesar de considerar o método dogmático interligado ao tempo lógico como sendo mais competente para abordar a filosofia, Goldschmidt não anula o tempo histórico; ao contrário, reconhece sua importância, ainda que entenda que este não é o melhor modo de interpretar a filosofia.
Hebert Marcuse, por sua vez, logo no início da introdução do seu livro Razão e revolução (1978), remete-nos a como um fato da história pode colaborar com o surgimento de filosofias. Aqui, ele aborda o contexto histórico da Revolução Francesa e explica como a história contribuiu para o surgimento do idealismo alemão.
O idealismo alemão foi considerado a teoria da Revolução Francesa. Isto não significa que Kant, Fichte, Schelling e Hegel tenham elaborado uma interpretação teórica da Revolução Francesa, mas que, em grande parte, escreveram suas filosofias em resposta ao desafio vindo da França […].(MARCUSE, 1978, p. 17).
Marcuse passa a mensagem de que entender o contexto histórico é muito importante para compreender como se originam os conceitos filosóficos de um determinado período. Ao reconhecer que um método é tão importante quanto o outro, Marcuse parece colocar ambos no mesmo patamar de relevância, o que o diferencia de Goldschmidt.
Há então uma discordância entre esses dois autores. Por um lado, Goldschmidt defende que, para uma interpretação filosófica, é mais eficaz se apegar principalmente às explicitações conceituais dos filósofos. Marcuse, por outro lado, acredita que a história é o elemento fundamental para entender os motivos que levam ao surgimento de um conceito filosófico, logo, o contexto histórico complementa a filosofia e os conceitos filosóficos.
Com base no posicionamento desses dois autores, é possível agora constatar qual o melhor método para abordar um texto de filosofia? A resposta para essa pergunta é um ressoante não! A oposição dos argumentos desses autores deve nos fazer entender que ambos os métodos são importantes e, de certa maneira, complementares. Mas não existiria um método melhor? O melhor método não seria utilizar esses dois métodos juntos?
De fato, o melhor método varia de acordo com o objetivo do intérprete, ou seja, com base naquilo que ele está buscando. É o objetivo que vai dizer qual o melhor método. Afinal, para que serve um método se não para guiar, por meio de um caminho, a um objetivo final? Ora, se o objetivo do intérprete é focar em um tema filosófico específico, e saber como filósofos de épocas variadas tratavam determinado tema, não há razões aparentes para que esse intérprete escolha recorrer à história, ao contrário, focará na explicitação dos filósofos. Todavia, se diferentemente deste, o objetivo for entender como um determinado pensador chegou à conclusão de um conceito, faz-se necessário compreender o contexto histórico em que viveu para então entender os caminhos extratextuais que o levaram a tal conceito.
Portanto, antes de se perguntar qual o melhor método para abordar um texto de filosofia, deve-se perguntar: qual é o objetivo final ao ler determinado texto filosófico? Somente a partir das respostas que surgirão dessa pergunta é que será possível constatar qual o melhor método a ser utilizado na leitura de um texto filosófico e, assim, aproveitar o máximo dessa leitura.
Referências
GOLDSCHMIDT, V. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. In: A religião de Platão. 2. ed. São Paulo: Difel, 1970. p. 139 – 147.
MARCUSE, Hebert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
[Revisão de Pedro Silva e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
[1] Mestranda, com bolsa Capes, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: paula.mariana.rech@gmail.com
O artigo é o quinto da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.
- Democracia e a humanidade dos outros, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/11/democracia-e-a-humanidade-dos-outros/.
- Culpa e consciências limitantes, de Luiz Augusto Flamia e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/18/culpa-e-consciencias-limitantes/.
- Monzani e a filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues, Paula Entrudo e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/25/monzani-e-a-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
Excelente texto, Dra. Natasha. Muito didático, informativo e esclarecedor. Espero que partilhe de mais.
Obrigado
🙂