Molhar as mãos nas águas do rio Tejo. Revisitar Lisboa já sabida desde a juventude. Foi primeiro no poema de Fernando Pessoa, na voz de Alberto Caeiro no seu O guardador de rebanhos: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.” Quem era esse homem que dizia essas coisas? Espanto. Ele não era só ele. Ele era múltiplo. Ele era Fernando mas também Alberto Caeiro. E Álvaro de Campos, e Ricardo Reis, e Bernardo Soares, este último o autor do Livro do Desassossego , tido por Pessoa como “semi-heterônimo”, por ser muito parecido com ele, Fernando (!). Ah, então pode? Ser muitos? E dizer coisas assim? Foi minha primeira visita a Lisboa. De modo que agora a primeira presencial era na verdade a segunda.
Sobe e desce ladeira. Ruas e calçadas estreitas. De repente o espaço amplo de um parque. No Parque Eduardo VII, a feira de livros abre generosamente para autores brasileiros. Clarice, Chico. Repercussões do prêmio Camões. As Memórias de um velho safado, de Bukowski, traduzidas para o brasileiro do original inglês “dirty”, ganharam e perderam na versão lusitana. O velho passou a ser chamado de “nojento”. Condenação sem ambiguidade. Ponto para o moralismo. O brasileiro “safo” como aquele que se safa, esperto, ágil, malandro, maneiro, o do savoir-faire e seu manejo, dançou. As muitas línguas do mundo ouvidas a cada passo. Presença marcante de negros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos. Estão nas ruas. Fazem turismo. Dirigem táxis. Dividem com indianos, portugueses, paquistaneses, bangladeshianos. Todos convergem na opinião política, sempre se referindo ao Parlamento como um “covil de bandidos, todos”. Me lembro dos Beatles, a canção em homenagem ao povo devastado pela miséria em Bangladesh.
Horas na fila para conhecer o Mosteiro dos Jerónimos, como eles dizem seu ó aberto. Ó aberto de um vão que levou José Saramago a dizer que era da ordem do milagre sua arquitetura multissecular. Materialista valida milagre, e não deixa de mostrar onde ele falta. Saramago não esqueceu da escravidão. No seu Viagem a Portugal, ele é implacável na denúncia de um “crime horrendo”. Registra em detalhes o anúncio em que a família Lafetá exibe com orgulho a coleira de ferro em torno do pescoço de um homem: “este escravo pertence a…” Saramago espera que o Museu de Arqueologia dedique uma sala inteira a exibir apenas a coleira daquele homem. Que não esqueçam. Quando lá estive estava fechado para reforma. Arqueologia? Não faz tanto tempo assim. Museu de Arte Contemporânea faria mais sentido.
Como não rolar de rir? O taxista briga com o motorista de ônibus por questões de preferência no trânsito; bate boca em voz alta, “mas eu estava a dar-te passagem, pá”, diz o taxista. O do ônibus buzina. O conflito se encerra com o definitivo insulto: “Ora vai te esconder!” O tabloide pendurado nas bancas escancara em manchete: “Cinco idosas violadas em lar”. No subtítulo, “todas acamadas”. Ainda explica: o homem de 65 anos, preso preventivamente, era “utente” (cliente, usuário, usufruidor, usador) do domicílio.
Uma farmácia fechada há dias traz na porta o cartaz: “Estimados clientes , o nosso funcionário está de baixa médica, por esse motivo estamos encerrados. Pedimos desculpa pelo incomodo. A gerência.” Uma amiga me conta que pegou uma placa num restaurante avisando que fecharam naquele dia por “disputa familiar”. Explicadinho. Tudo é maneira de dizer. Na porta do moderno e pontualíssimo metrô para Cascais, o aviso: “Perigo de entalamento quando porta abrir”.
Cardápio do simpático restaurante Baiuca: “Na rua da Barroca, 86 ao bairro alto, uma encantadora senhora de Almodovar, a dona Júlia Pereira não tem mãos a medir. Sempre casa cheia. O bacalhau com natas e arroz de pato são autênticas loucuras. Boas sobremesas, decoração feita por Jorge Rosa, que infelizmente se encontra em fase terminal no hospital Sta. Maria, teve o gosto na decoração, onde se pode observar as caricaturas de Amália Rodrigues, Maria da Fé, Ada de Castro, e tantas outras.”
Na hora da comida, os gajos se lembram de paciente terminal, que, aliás, fez um bom trabalho na decoração, girando em torno do fado, só que lá ninguém canta. A comida do Baiuca é boa, mas Fado Vadio não foi dessa vez. Em matéria de rango, a Casa do Bacalhau é inesquecível. Moqueca de bacalhau com camarões graúdos desfaz-se na boca. Nos lugares da boemia, Alfama, Chiado, a ginja é birita para animar.
Sem graça foi o panfleto distribuído por um grupo de pessoas postadas num estande bem no Parque das Nações, parte moderna de Lisboa: “Vamos parar com a extração forçada de órgãos humanos na China”. Verdade ou fake news? Coisa de chinês de Taiwan? Guerra fria China-EUA?
Na capa do panfleto: “O tempo médio de espera por um transplante de fígado é de 1 semana”. Em tipos menores: “Anunciado no site da Universidade 2º Hospital Médico Militar, agora excluído, arquivado em www.upholdjustice.org/node/218”.
Que diabo é isso? A denúncia é de extração de órgãos por lucro, a palavra-chave. Custos dos transplantes em euros: córnea, 30 mil ; pulmão, 150 mil; fígado, 100 mil; coração, 130 mil; pâncreas, 130 mil; rim, 55 mil. “Na China, os órgãos vitais de prisioneiros condenados no corredor da morte, bem como de prisioneiros de consciência, são extraídos para transplante comercial. A extração forçada de órgãos é realizada na China para atender à procura de transplantes comerciais em todo o mundo, de modo a trazer lucro aos falidos sistemas militar e de saúde chineses.” Atendimento de demanda mundial? Ideologia?
Os autores da denúncia se dizem praticantes de uma “disciplina espiritual” chamada Falun Gong (www.falundata.org) percebida como uma ameaça pelo governo chinês. Porque não bebem, nem fumam e fazem exercícios de disciplina, os praticantes se dizem mais saudáveis e, portanto, seus órgãos são os mais desejados.
O folheto diz ainda que em março de 2014 o Comitê Econômico e Social Europeu alinhou-se com o Parlamento da União Europeia e definiu as práticas de obtenção de órgãos da China como “escandalosas” e “um crime para a humanidade que deve acabar imediatamente.” Há reconhecimento de que algumas medidas foram tomadas pelo governo chinês no sentido de redução dessas práticas, mas os denunciantes dizem que muito mais precisa ser feito.
Dia lindo em Cascais. Pegamos o comboio – sempre pontual, e se estiver marcado para partir às cinco, perdes a viagem se chegares a cinco e um. Trem de ferro, trem de ferro, no ritmo. Chegamos à praia, não é pedregosa como nos disseram. Lembra o mar calmo da Bahia. Por isso me espantei com o cartaz que dizia do risco de tsunami e apontava a saída de emergência a 700 metros de altura. Como assim, tsunami em Portugal? É. Já aconteceu. Em 1755. Matou mais de 60 mil pessoas. Ondas chegaram a 15 metros. E seus efeitos foram sentidos até no Nordeste brasileiro.
Também fomos de trem até Sintra. Me pareceu turistizada. Panca aristocrática, com seus castelos árabes ou não. Cara. Exige muita perna para visita de seus pontos históricos lá no alto. Quem sabe um tuktuk. Andamos de bondinho e tuktuk pelo centro histórico de Lisboa, seus monumentos imponentes, sua boemia nos bairros tradicionais , onde a noite é bem animada. Num dos vários mirantes que se voltam para o Tejo, cantor de rua evocou a canção italiana de Bruno Martino Estate reinventada por João Gilberto. Ao contrário de Andrea Bocelli que diz “odeio o verão”, João Gilberto despe sua interpretação de toda grandiloquência. Aperto no coração de quem perdeu o amor e agora morre de dor. Quem sabe, a cegueira de Bocelli tenha ido mais longe na saúde mental, mas João é mais musical, mais verídico, mais pungente, menos infantil. Depois das telenovelas que paravam Lisboa e mudavam seu jeito de falar, agora é a vez da música brasileira, cada vez mais querida.
Pelo poema de Fernando Pessoa e pelos audazes navegantes, molhei minhas mãos no Tejo, andei de teleférico às suas margens. Retorno aos que nos descobriram/inventaram mesmo que tenha sido por acaso, um desvio de rota, a calmaria, um trocadilho ou uma piada de bom mau gosto que os afastaram do caminho marítimo para as Índias, desencontradas das índias. Deixaram-nos a língua, de fora. Exilados dentro de casa.
A casa de Fernando Pessoa é um espetáculo. Vemos seu quarto, sua cama, os livros que leu, temos notícia do seu desassossego. Manuscritos dependurados do teto. O que resta do seu corpo foi trasladado para o Mosteiro dos Jerónimos e sepultado em posição vertical, cadáver, mas de pé. Na Casa, um moderno museu, palestras sobre relações entre arte, loucura e criatividade se sucediam. Um terapeuta conta-nos de paciente psicótico que jamais conseguiu tocar piano porque não se livrou do fantasma: era como se masturbasse em público. Loucuras ultramarinas, lá e cá, não é geográfico. O social pode metabolizar a loucura?
Nem tudo são flores para quem quer viver em Portugal. O governo cortou o direito de transitar pela comunidade europeia usando a terrinha como porta de entrada. Os “zucas” (“brazucas”, como somos chamados) não estão mais com aquela bola toda. A disputa por emprego é feroz. Custo de vida aumentado. Cresce o racismo. Estudantes de Coimbra fizeram uma caixa de madeira e a encheram de pedras com os seguintes dizeres: “para atirar nos zucas”. Doidos de pedra.