Há uma certa repetição, muitas vezes automática, de que o brasileiro é um povo pacífico – não entramos em uma guerra há mais de 70 anos e vivemos em harmonia com nossos vizinhos de continente –, festivo – olha o Carnaval que não nos deixa mentir –, amigo de todos – somos hospitaleiros, simpáticos, brincalhões. Seríamos, então, o modelo do Homem Cordial. Pobre Sérgio Buarque de Holanda, o sociólogo que no clássico Raízes do Brasil cunhou esse conceito. A questão é que a cordialidade a que se referia o pai de Chico Buarque não era exatamente essa que adoramos garantir que ostentamos.
O que ele quis dizer com essa expressão, no contexto de um debate quente com o escritor Ribeiro Couto, é que a “cordialidade” do brasileiro advinha da gênese familiar de sua relação, o que deixava, muitas vezes, os valores frouxos nas inserções sociais, gerando efeitos colaterais, como a confusão indiscriminada entre o público e o privado. As regras, num contexto “amigável” e “cordial”, eram, dessa forma, sumariamente ignoradas e velhas estruturas de compadrio e poderio se mantinham sem maiores lutas ou queixas. Normalizava-se, assim, o erro, cordialmente.
PERFIL – SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA (1902-1982)
Um dos principais historiadores e sociólogos do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda é considerado um dos grandes intérpretes do país. Paulista de nascimento, mudou-se ainda jovem para o Rio de Janeiro com a família. Foi um entusiasta nos movimentos modernistas dos anos 1920. Prestigiado como professor e jornalista, deu aulas na Itália até retornar ao Brasil e se tornar um nome de referência na USP. Entre suas principais obras estão, além de Raízes do Brasil, publicada em 1936, os trabalhos Visão do Paraíso (1959) e Do Império à República (1972). Ele teve sete filhos com Maria Amélia Alvim, entre os quais estão a cantora Miúcha e o compositor e escritor Chico Buarque de Holanda. Em seu mais recente livro, O Irmão Alemão, Chico aborda a história do filho que seu pai teve na Alemanha antes de se casar no Brasil.
Nossa cordialidade, portanto, está ligada a uma tendência em burlar e “ajeitar as coisas” e não a um suposto atávico pacifismo de nossa índole. Não, não somos pacíficos. Se o fôssemos, não teríamos 60 mil homicídios por ano e outras 50 mil vidas não se extinguiriam a cada 12 meses em acidentes de trânsito, cuja esmagadora maioria é causada por imprudência e atitudes violentas ao volante. Se fôssemos cordiais como interpretam os maus leitores (ou aqueles que jamais leram) Sérgio Buarque de Holanda, não seríamos campeões em crimes contra mulheres, não estaríamos no pódio das agressões a gays e transgêneros, não precisaríamos de leis que nos impeçam de sermos selvagens com idosos e crianças de nossas próprias famílias.
O brasileiro, em geral, é violento. Tem enorme talento para produzir estupros, execuções, adoraria adotar a Lei de Talião para resolver seus problemas, lotaria praças, se tivesse chance, para ver forcas e guilhotinas funcionando. Achamos normal termos os presídios que temos, onde toda sorte de violência é praticada e ensinada àqueles que, aqui fora, serão ainda mais violentos. Não nos decidimos a acabar com os abandonados que perambulam pelas cracolândias, com o hediondo aliciamento de crianças e adolescentes para prostituição infantil, com as ameaças e os crimes policiais, com as quadrilhas em que se transformaram muitas torcidas organizadas de futebol. Achamos tudo isso cordialmente “do jogo”.
Nossa indignação soaria, talvez, falsa, já que tanta “gente de bem” solta seus cachorros raivosos nas redes sociais, agredindo, ofendendo, difamando, dando suas opiniões sem a mínima base para isso, fazendo seus julgamentos e apressando-se nas condenações. Com a polaridade que vivemos, em que divergências se tornam inimizades e terminam em bate-bocas enfurecidos, é inescapável analisarmos o que somos e como podemos sair de um círculo vicioso que só nos faz mal. Não somos cordiais naquele sentido que gostaríamos de nos ver, mas bem que poderíamos ser um pouco menos primitivos e passionais com nossos sentimentos violentos. Sérgio Buarque foi certeiro: somos cordiais até em seu sentido etimológico. Cordial vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Sim, somos regidos por corações que, infelizmente, estão cada vez mais amargurados.