Pouca gente dá atenção para um nome que, às vezes, sequer ganha um exíguo espaço na capa dos livros, ao lado da assinatura do autor da obra. No caso dos volumes transpostos diretamente do russo para o português, porém, esse mau hábito de desprezo pelos tradutores foi amenizado graças a um homem que tomou para sua vida a missão de fazer entender a nós, leitores brasileiros, os clássicos russos. Boris Schnaiderman dedicou décadas a esse ofício. Sua morte no mês passado, aos bem vividos 99 anos de idade, fechou um ciclo de produção dos mais importantes para os amantes da boa literatura no país no século 20.
Boris Solomonov Schnaiderman, ucraniano naturalizado brasileiro que fugiu com a família para cá por conta das perseguições na antiga Rússia após a Revolução Bolchevique de 1917 (deflagrada exatamente no ano em que nasceu), tinha familiaridade com a literatura e a língua de sua terra natal. Até os 8 anos de idade esteve em contato com sua cultura-mãe, algo que foi rompido pelas ameaças habitualmente sofridas por famílias judias, como era a sua.
Ele gostava de contar que tinha uma vaga lembrança da movimentação em torno de uma grande escadaria na cidade de Odessa, próxima a Úman, localidade de seu nascimento. Eram as filmagens da famosa cena do filme Encouraçado Potemkin, do cineasta Serguei Eisenstein, uma das mais icônicas da história do cinema. Ufanava-se de ser “o último sobrevivente” daquele momento. “Todo mundo morria naquela escadaria”, troçava.
Ao chegar por aqui em 1925, continuou a ler os autores de sua infância, mesmo tendo se afastado da área, quando se formou em Agronomia pela Escola Nacional, no Rio de Janeiro. Em 1944, embarcou em um outro grande encouraçado, desta vez norte-americano, com mais 5 mil soldados, para lutar na Itália contra os nazifascistas na Segunda Guerra Mundial, integrando a Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Schnaiderman assumiu sua verdadeira vocação naquele ano, quando começou a fazer traduções dos autores russos que tanto gostava. Era um trabalho árduo e ainda não realizado no Brasil. Até então, as pessoas liam os romances de Dostoiévski e Tolstói em traduções indiretas, feitas das versões em francês. Seu esforço ganhou tanto destaque que o fato de nunca ter cursado Letras não impediu que fosse convidado a assumir a posição de professor no curso de Língua e Literatura Russa da USP, em 1960.
Algumas obras traduzidas por Boris Schnaideman
- A Dama de Espadas (Púchkin)
- Um Jogador (Dostoiévski)
- Memórias do Subsolo (Dostoiévski)
- Meu Companheiro de Estrada e Outros Contos (Górki)
- O Amor de Mítin (Búnin)
- No Campo da Honra e Outros Contos (Bábel)
- O Percevejo (Maikóvski)
A importância de seu trabalho de tradutor, além dos livros de ensaios e de ficção que lançou, é incomensurável. Foi Schnaiderman quem permitiu ao público brasileiro ler as primeiras traduções de obras do poeta Maiakóvski. Aleksandr Púchkin, Anton Tchéckov e Isaac Bábel foram outros nomes de primeira grandeza que coube a ele traduzir para nosso idioma e deleite.
Todos os demais tradutores do russo no Brasil, como Rubens Figueiredo e Paulo Bezerra, que com o tempo dividiram com Schnaiderman a incumbência de trazer os autores daquela fundamental tradição literária para nossas prateleiras, reconhecem no pioneirismo do veterano professor e escritor um marco neste setor. A partir de sua erudição, selos como a 34, a Companhia das Letras e a extinta Cosac Naify apostaram nos clássicos da Mãe Rússia. Os leitores de A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, ou de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, têm, portanto, uma dívida impagável com aquele senhor de aspecto frágil, mas que se manteve incansável até os últimos momentos de sua vida.