(Com Rogério Borges, jornalista e editor de Ermira)
Washington Novaes abre o sorriso quando se lembra do amigo Carmo Bernardes. “Era um caipira erudito”, define, com a certeza de quem conheceu muito de perto o escritor, com seu temperamento múltiplo e seu enciclopédico conhecimento a respeito da natureza. Era uma sabedoria que brotava da terra e se adquiria nos livros. A prosa, escrita e falada, norteando a observação atenta,de cada detalhe, de cada minúcia, de cada elemento. Nesta entrevista exclusiva ao Ermira, Washington, jornalista e referência nacional em temas ambientais, recorda como levou o autor a escrever na imprensa, lembra-se de episódios engraçados vividos ao lado do amigo e diz que Carmo Bernardes é o maior tradutor do Cerrado e seus segredos.
Qual história sobre seu amigo Carmo Bernardes você se lembra em especial?
Eu ficava pensando num jeito: ainda vou pegar o Carmo. Um dia, numa caminhada de manhã, tinha muito tiziu, esses passarinhos, pousados na cerca. Eu então virei para o Carmo e disse: Carmo, me explica uma coisa. O tiziu pula porque canta ou canta porque pula? Aí se fez um silêncio e depois o Carmo olhou para mim e disse: “você anda bem desocupado, hein, tendo tempo de ficar olhando tiziu na cerca!” (risos).
E ele respondeu?
Não! Até hoje eu nunca soube a resposta.
Washington Novaes conta, em vídeo, como conheceu Carmo Bernardes, lembra das conversas dos dois na casa do escritor e relata a história da viagem dos dois ao Pantanal, quando andaram de balão
De onde Carmo tirava tanto conhecimento sobre o Cerrado?
Da experiência e da leitura. O Carmo era uma pessoa que lia muito, principalmente sobre o Cerrado. Estava sempre se informando e tinha um prazer especial em desmentir mitos sobre o Cerrado. Ele desmentia com base no conhecimento empírico, no que ele tinha vivido desde menino na roça. Ele sabia aquilo de uma vivência própria e tratava muito disso.
Quais eram esses mitos?
O primeiro deles é que o Cerrado era um lugar inútil. No Brasil inteiro se difundiu essa imagem de que o Cerrado não valia nada, que era seco, que era árido, que não tinha água, que não produzia nada. O Carmo desmentia isso com muita veemência, tinha paixão por essas coisas todas. O Carmo trouxe para o Cerrado um conhecimento precioso. Antes dele não me lembro de alguém com aquela capacidade de comunicação, com a linguagem dele, capaz de traduzir isso de forma maravilhosa.
Ele dizia que “o Cerrado era uma floresta de cabeça para baixo”.
Essa é uma frase genial do Carmo. Ele sabia que a maior parte da biomassa do Cerrado estava no subsolo. Ele tem que mergulhar suas raízes muito fundo para encontrar água. Na média, as árvores têm uma massa maior que as da Amazônia, só que debaixo da terra. Ele fazia essa comparação. Ele falava também de outra questão, que até hoje pouca gente sabe, que é o fato de que o Cerrado é um repositório de água. A água entra na terra durante as chuvas e vai para esse depósito e dele nascem fluxos para os três grandes biomas brasileiros: para a bacia do Rio São Francisco, para a bacia do Paraná – pelo Rio Paranaíba – e para a bacia amazônica – pelos rios Araguaia e Tocantins. E também vai passando descuidado algo altamente preocupante que é a perda desse repositório, que vai sumindo. Com o desmatamento, há a impermeabilização do solo e a água da chuva não penetra nele. Ela bate, escorre, vai para os rios e vai embora, não alimenta esses repositórios. No ano passado, por exemplo, secaram as nascentes do Rio São Francisco e o fluxo do rio já diminuiu e continua diminuindo.
Washington Novaes rememora como Carmo o ensinou a conhecer o Cerrado. Veja o vídeo
Qual foi o primeiro livro de Carmo Bernardes que você leu?
Foi Jurubatuba e fiquei encantado. Carmo era um grande romancista, uma linguagem fantástica. Até houve um caso quanto a isso. O Walter George Durst, autor de novelas da Globo, se interessou muito em fazer uma novela baseada em Jurubatuba. Acho que foi o Carmo que pediu para que entrasse em contato comigo e eu comecei a acertar isso com ele. Ele juntaria dois ou três livros do Carmo em uma novela, mas isso acabou que não deu certo. Parece que houve algum desentendimento do Walter com a Globo e o projeto não foi para frente. Em outra ocasião, o Ziraldo, que é muito meu amigo, também se interessou em mediar isso aí, mas também não foi adiante. Eu sei que o Carlos Drummond de Andrade, com quem conversei uma vez, era um grande admirador do Carmo. Havia lido vários livros dele, tinha enorme admiração por sua linguagem, pelo conhecimento que ele tinha.
Você acha que o Carmo é injustiçado por não ser tão reconhecido?
Tenho certeza. O Carmo ficou muito confinado ao Cerrado e fora daqui poucas pessoas o conheciam. O Drummond era uma delas. Eu não sei se era uma questão das editoras, que não tinham um plano para torná-lo conhecido. E havia um mito que foi ruim para o maior conhecimento do Carmo, porque ele era considerado difícil de ler, por conta de sua linguagem, o que é uma bobagem.
O jornalista lembra da convivência com Carmo e histórias engraçadas (um voo perdido e a adivinhação de chuva). Assista ao vídeo.
Como era o temperamento de Carmo Bernardes?
Uma pessoa muito simples, não falava muito. Você tinha que ficar provocando. Era um observador da vida. Eu me lembro que fui ver o Carmo na véspera da morte dele, no Instituto do Coração, aqui em Goiânia. Ele estava lá de olhos fechados, não falou nada, eu até tentei falar alguma coisa, mas ele não falou nada. Depois de algum tempo, ele me olhou e me disse que eu podia ir embora porque ele tinha que trabalhar. Ele pediu a uma neta dele que estava ao lado da cama para ligar o computador. Ela fingiu que ligou e ele passou a digitar um computador imaginário em cima da cama. Alguns dias antes, no hospital, eu estive lá e ele dizia à filha dele, a Aymé, que queria ir embora para casa, para a dona Maria, a mulher dele, fazer o prato de que ele mais gostava, que era rabada com angu. Ele ia comer a rabada com angu e se sentar na varanda da casa dele para ver a vida passar. A coisa mais bonita que ele achava era ver a vida passar.
Qual era o tema mais caro ao Carmo Bernardes?
Carmo saiu da roça com quase oito anos de idade. Ele era muito marcado por isso aí. Era o conhecimento que ele tinha. Para a cidade, ele levava essas mudanças e essas perdas. Mas ele sabia exatamente onde estava.
Ele tinha também uma visão crítica da situação de exploração do homem do campo?
Sim e isso vinha também daquele tempo em que viveu na roça. Ele tinha consciência dessa situação. Tinha uma visão de esquerda, socialista, mas não chegava a ser um tema que estivesse muito presente em seu cotidiano, por iniciativa dele. Se você puxasse o tema, claro que ele responderia.
As três principais características de Carmo Bernardes, segundo Washington Novaes. Assista.