San Francisco (EUA) – Reconhecida em todo o mundo como uma cidade libertária e icônica para a comunidade gay, a californiana San Francisco atravessa momentos de dúvidas e tensão. Os avanços conquistados nas últimas décadas por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros na mais visitada cidade da costa oeste dos Estados Unidos foram cobertos agora por uma nuvem negra lançada por Omar Mateen, 29 anos, autor da matança na casa noturna Pulse, em Orlando, na Flórida.
Prestes a realizar a 46ª edição da Gay Freedom Day Parade, também conhecida como Pride (orgulho), San Francisco teme pelo pior. Mais de um milhão de pessoas, muitas de várias partes do mundo, são aguardadas para este momento de celebração do orgulho gay no dia 26 de junho.
Nos últimos dias, organizadores do Pride têm feito sucessivas reuniões com a polícia local e agentes do FBI para garantir a segurança do evento. Ao contrário do ano passado, quando havia um motivo a mais para sorrir e colorir as ruas – a Suprema Corte dos Estados Unidos legalizou em todo o solo norte-americano o casamento gay –, este ano o cenário sangrento da Pulse assombra.
Estima-se que em San Francisco a comunidade gay seja formada por 15% da população, mais do que qualquer outra cidade norte-americana. A base dessa colônia foi formada durante a 2ª Guerra Mundial, quando militares americanos suspeitos de homossexualidade foram encaminhados a San Francisco para serem avaliados por uma junta. Cerca de 10 mil deles foram dispensados, muitos permaneceram na cidade.
Em 1964, a tradicionalista revista Life Magazine nomeou a cidade como a capital gay norte-americana. Em meio a ameaças e discriminação, eles realizaram em 1970 o primeiro Pride. Logo em seguida teve início a grande migração para a região da Rua Castro, o mais conhecido distrito gay de San Francisco.
Harvey Milk
Entre os que chegaram à Castro nos anos 70 estava Harvey Bernard Milk, o primeiro gay assumido a ser eleito para um cargo público na Califórnia. Foi na condição de supervisor da cidade de São Francisco que ele foi assassinado em 1978. Milk tornou-se um mártir do ativismo gay. Tem seu nome a praça na confluência entre a Rua Castro e a Avenida Market, para onde correram os defensores da causa quando o sangue jorrou na Pulse. “Parece que, quando fazemos progresso, outros odeiam e querem nos machucar. Eles acham que nos intimidando, nos matando, os avanços desaparecem, mas é uma ideia, não uma pessoa. Espero que a ideia fique enraizada”, comentou ao jornal San Francisco Chronicle um morador da Castro. Durante as cerimônias fúnebres de Harvey Milk, a bandeira do arco-íris foi oficialmente usada como símbolo da diversidade e da esperança do ativismo gay. Desenhada em São Francisco pelo artista Gilbert Baker, ela foi uma resposta às hostilidades e à opressão.
As cores da rainbow flag, que representam sexualidade, vida, cura, sol, natureza, arte, harmonia e espírito, integram a paisagem de San Francisco com a mesma intensidade da ponte Golden Gate. Após o ataque à casa noturna gay em Orlando, ela foi hasteada a meio mastro em sinal de luto e talvez de alerta. Há medo de retrocesso nos históricos avanços dos direitos gays capitaneados pela comunidade local.
Foi ali na mesma Castro que nos anos 90 manifestantes LGBT entraram em confronto com a polícia exigindo tratamento para aqueles que estavam morrendo em consequência da aids. O Pride ganhou mais essa bandeira e desde então passou a financiar não apenas esta causa, mas muitas outras que atingem sua comunidade como jovens sem teto e mulheres agredidas. Por trás do brilho, das cores vivas e do júbilo do Pride há uma luta social sem precedentes em San Francisco.
Ainda impactados pelo ataque de Orlando, muitos integrantes da comunidade LGBT disseram que não vão retroceder, não serão intimidados e estarão no Pride. Outros não escondem o temor de novas tragédias. Chefes da polícia informaram que precisam prevenir um possível copicat, um imitador de Omar Mateen, por isso o Pride 2016 terá elementos a mais e antagônicos ao sentimento libertário da comunidade gay: atiradores de elite e cães farejadores. Visivelmente, a segurança foi reforçada nos pontos antológicos da Castro após o ataque de Orlando.
Outro tema em discussão neste momento em San Francisco e em outras cidades norte-americanas é o reforço da segurança nas casas noturnas. Uma preocupação que nunca foi prioridade. “Nas discotecas desaprendemos o ódio e aprendemos a amar nosso verdadeiro eu. Elas são os nossos espaços seguros; lugares onde a música, a dança e a alegria de nossa união coletiva desbloqueiam os nossos medos e extinguem a nossa persistente autoaversão”, escreveu Barry Walters para a Bilboard.
Este ano, o tema do Pride é Justiça Racial e Econômica. À margem dos debates da corrida rumo à Casa Branca, as discussões nos ambientes notadamente gays não estão focadas em influências do Estado Islâmico ou controle de armas. Teme-se sobretudo pelo retrocesso às conquistas de respeito aos direitos individuais.
Tanto é assim que, em meio às homenagens aos mortos de Orlando, uma das pessoas ovacionadas na Castro foi a médica Suzanne Barakat, síria e muçulmana, que passou a lutar contra a islanfobia depois que seu irmão universitário de pouco mais de 20 anos, a mulher dele e sua irmã foram assassinados a tiros em Chapel Hill, na Carolina do Norte, em fevereiro do ano passado, por sua fé muçulmana.
O executor foi um vizinho dos jovens. No palco, vestida com seu hijab, Suzanne, que trabalha no Hospital Geral de San Francisco, disse que como médica vê tiroteios como um “sintoma de ódio, crueldade e intolerância”, cujo medicamento “é o amor, a bondade e a compaixão”.
New Orleans
Outra histórica matança em massa de gays numa casa noturna foi resgatada em meio à dor. Em 1973, em New Orleans, 32 pessoas morreram na Upstairs Lounge, envolvidas pelas chamas e a fumaça de um incêndio criminoso. A única pessoa que poderia dar maiores detalhes do que tinha ocorrido cometeu um suicídio suspeito. O caso caiu no esquecimento porque era um tempo em que as famílias tinham vergonha de reclamar os corpos daqueles que pereceram na tragédia. O ataque de Orlando se assemelha ao que ocorreu em New Orleans porque enfatiza o ódio aos considerados diferentes.
Na comunidade gay de San Francisco a figura de Omar Mateen surge também como motivo de reflexão. Informações da mídia o apontam como uma pessoa que tinha grande aversão aos homossexuais. Mateen, segundo alguns, poderia estar lutando internamente contra a sua própria condição similar.
“Existem afegãos americanos que escondem sua homossexualidade por medo de reação. Sim, essas questões de intolerância e assimilação existem na maioria das raças e culturas”, escreveu Mizghon Zahir Darby, uma escritora da primeira geração de afegãos norte-americanos que se sentiu compelida a pedir desculpas em público.
Nessa histórica cidade LGBT, uma imensa tristeza invade bares e restaurantes dos redutos onde eles costumam marcar presença com sua alegria esfuziante, entre eles as ruas Castro e Folson. Os sorrisos deram lugar a olhares sombrios. Sob as cores da rainbow flag, olham desconfiados para curiosos e turistas que chegam agora em maior número. A polícia está presente, o medo também. Sim, o orgulho gay transformou-se em dor.
Triste constatar por notícias como a do massacre de Orlando que a homofobia só tem aumentado. Dos ataques físicos às humilhações cotidianas. Uma situação que, temos certeza, só poderá ser revertida com muita luta. E lutar significa desconstruir o ódio contra a diversidade. É debater as questões de gênero nas escolas, em casa, nas igrejas. Não se trata de ensinar ninguém a ser LGBT, mas de respeitar a existência de cada um na sociedade.
Devemos respeitar as pessoas como elas são, independentemente de sexo, cor, religião, raça. Temos de olhar as pessoas com os olhos do coração e não da cara
No Brasil, os ataques homofóbicos também recrudescem a cada dia. O governo federal, em iniciativa pioneira na América Latina, lançou em 2011, pela primeira vez, dados oficiais sistematizados sobre violência homofóbica no Brasil. O último relatório data de 2013. É preciso fazer o enfrentamento ao preconceito no País e no mundo. Os LGBTs norte-americanos foram precursores nessa luta e certamente não haverá ódio capaz de fazê-los refluir das suas conquistas por direitos.
Há poucos meses, o ministro Marco Aurélio Mello disse uma frase, tentando interpretar o contexto brasileiro, que é a mais completa tradução do que acontece hoje no mundo: “tempos estranhos”. Caminhamos a passos largos para um retrocesso gigantesco, inimaginável não muito tempo atrás. O ódio, a intolerância, a perseguição a crenças, ideologias, amores estão a galope. Os fundamentalistas e os radicais agem soltos, sem pudores. E com todas as políticas de direitos humanos desmanteladas pelo governo golpista, comprometido até a alma com a bancada evangélica, reacionária e totalitária do CN, o Brasil, que já tem um número alto de assassinatos LGBT, não está salvo de uma tragédia dessas. Se a luta foi dura até aqui, precisamos nos desdobrar e aumentar nossas forças para garantir o que foi conquistado e avançar contra todo tipo de discriminação: de gênero, de raça e de orientação sexual.
Todas as formas de descriminação deveriam ser tratadas como crimes hediondos. Infelizmente a causa LGBT, apesar de conquistas importantes, ainda sofre com ações como o massacre de Orlando. Quase sempre esses atos de intolerância tem conotação religiosa. E o fanatismo religioso é um cancro no mundo atual. No Brasil, pós golpe, estamos vivenciando um governo tomado por falsos líderes religiosos. Quase todos envolvidos em crimes de toda espécie. Desde estupros de fiéis até formação de quadrilha. Ao contrário do fanatismo no mundo islâmico, onde o terrorismo é justificado pela leitura equivocada dos dogmas religiosos, no Brasil esse fanatismo quase sempre é usado para proporcionar uma vida nababesca para os Malafaias e seus asseclas.