Eram tardes de brilho intenso e quente, que reverberava nas casas alvas e alinhadas, no calçamento de pedras, na total ausência de sombra para algum alívio. Nelas, o tempo também se derretia, impiedoso na sua lentidão.
Tudo ali era presente, imediato, até mesmo o legado ancestral que impregnava as paredes de adobe e o chão de tijolos aparentes, brancos, ou de madeira nos aposentos mais nobres. Nas telhas de barro que do alto refrescavam o ambiente, nos balaústres, jardins e quintais, a herança dos antepassados era presença concreta que vigiava nos retratos sempre a nos fitar, como parte da rotina tranquila, embora plena de afazeres.
– Vem cá, menina! Vá na farmácia de Lauri comprar Cibalena. É num pé lá e outro cá, hein?
Inexistia possibilidade de recusa às ordens dos mais velhos, e eles eram muitos, sempre à espreita para alcançar a presa mais vulnerável, dentro de casa ou postados nas janelas, nas portas da rua. O jeito era ir, sabendo pouco provável a demanda ser bem atendida em primeira mão.
? Oooora! Essa fita não está do jeito que pedi. Volte em d. Sinhazinha e diga que é mais fina a que eu quero.
Eram também tardes de temporal, de gente rezando e queimando palha da procissão de ramos para se proteger dos raios, de moradores amontoados sobre a cama no mesmo cômodo, nada de pé descalço no chão, sei do caso de fulano que andava assim e não escapou…
E havia as chuvas finas, dias a fio, naquele inverninho preguiçoso, de roupa que não secava e tédio de prisioneiro, mas perfeito para sopas e pamonhadas, reunindo família e vizinhos no trabalho de colher o milho, descascar, tirar os cabelos, ralar, temperar e cozinhar em tachos enormes no fogão a lenha as delícias em seguida despejadas em grandes peneiras e devoradas sem qualquer limite para a gula. Tinha até disputa entre a meninada: Comi sete!!!!
“E havia as chuvas finas, dias a fio, naquele inverninho preguiçoso, de roupa que não secava e tédio de prisioneiro, mas perfeito para sopas e pamonhadas, reunindo família e vizinhos no trabalho de colher o milho, descascar, tirar os cabelos, ralar, temperar e cozinhar em tachos enormes no fogão a lenha as delícias em seguida despejadas em grandes peneiras e devoradas sem qualquer limite para a gula.”
O clima ditava a vida, porque ela era assim, telúrica, de secas e enchentes do Rio das Almas, de montanhas, céu, nuvens, ventos, estrelas, lua; de árvores e flores e cheiros e sabores. Uma força da natureza a alimentar até o misticismo católico, dominante em fé, transcendência, medo, culpa e castigo, magnífico nos rituais, músicas, rezas, missas.
Na procissão, roupa nova, vela na mão, olhar atento para encontrar o ponto mais estratégico na fila onde poderia ver e ser vista enquanto o semblante interpretava constrição, disfarce do coração acelerado, apaixonado. A intensidade passional infantil só se potencializava com tantas proibições e pecados. Um ligeiro esbarrar, um toque acidental, motivo mais que suficiente para a fantasia desatar a criar enredos românticos, com direito a trilha sonora embalando as cenas, como nas novelas da televisão.
Havia muros de adobe, arrematados no alto por pedras chatas e largas, sobre as quais se podia caminhar sem esforço de equilíbrio, escolhendo quando pular para alcançar a fruta mais apetitosa. Cagaita, caju, jabuticaba, goiaba, manga, abacate, tamarindo, atas, que sempre foram as mais raras e disputadas em meio a tanta fartura.
A cidade era o mundo, nada parecia existir além daquela moldura de morros azulados contornando esse reduto de gente conhecida há gerações (filho de quem?, neto de quem?). Gente que comungava crenças, costumes e preconceitos num elo de convicção com que se moldavam expectativas e comportamentos. Acolhedor, solidário, mas também cruel e devastador na fúria com que rotulava, condenava e bania os não adequados. As senhoras e as beatas a espiar qualquer indício de lascívia ou desvio, enquanto a noite se revelava tão propícia para os perigos e prazeres juvenis.
Politicamente correto era conceito desconhecido. Bobo era bobo, feio era feio, doente, doente, os apelidos maldosos colavam pra nunca mais largar, sem vislumbre de compaixão. Talvez por esse viés de maldade incontida o humor encontrasse brecha para se espalhar também impiedoso e contagiante, emergindo de todo tipo de situação, até as trágicas, não poupando sequer a morte. Morte que não era asséptica nas salas de luz fria de hospital, não, era próxima, familiar, íntima.
“Havia muros de adobe, arrematados no alto por pedras chatas e largas, sobre as quais se podia caminhar sem esforço de equilíbrio, escolhendo quando pular para alcançar a fruta mais apetitosa. Cagaita, caju, jabuticaba, goiaba, manga, abacate, tamarindo, atas, que sempre foram as mais raras e disputadas em meio a tanta fartura.”
Os sinos da matriz anunciavam o fim, um toque cerimonioso e melancólico que tinha nuances caso o morto fosse homem ou mulher. As mulheres mesmas preparavam o corpo, lavavam, vestiam com a melhor roupa, e parentes e amigos carregavam o caixão pelas ruas, até a última esquina depois da qual a ruazinha estreita e reta, culminando no portal da morada eterna, cemitério de terra muito vermelha e grudenta nos sapatos, como a sinalizar que todos pertenceríamos ainda àquele chão sagrado para onde retornavam os que dele brotaram.
Nascimento também não era com médico, pré-natal ninguém conhecia. Na hora H, Bendita Gusmão, a negra vó Bendita de tantos de nós, comparecia com seus poucos apetrechos para fazer o parto, amparando mulheres valentes pela pressão do próprio destino. Na sala ao lado, a ansiedade até que o choro confirmasse nova vida entre nós. O feminino muito mais determinante, ativo, zelando, cuidando, nutrindo e educando, comando exercido sob um manto de submissão ao homem, provedor e mais distante da pulsação cotidiana.
Por séculos, assim transcorreu, em horizontes estreitos que foram se alargando sob a influência de visitantes e dos primeiros moradores “de fora”, que contrastavam na fala e no comportamento, mas aos poucos foram assimilando a magia e convivendo com as regras, muitas sábias e outras nem tão louváveis do lugar.
O que antes eram largos para brincadeiras e descanso, poços de mergulhos e corredeiras e cachoeiras de um Cerrado de aventuras; o que era casa de morar com porta da frente sempre aberta ao visitante (e a porta do meio no trinco, sem trava, apenas para resguardar um pouco de privacidade, segurança não era preocupação, bastava gritar o nome do dono e ir entrando)… o que foi fazenda de tios onde quem chegasse, não importava quantos fossem, comia e tinha pouso certo, quase tudo isso virou imóvel cobiçado, objeto de especulação, empreendimento turístico.
Casa de bisavó agora é pousada chique, uma entre tantas que foram se instalando à medida que a cidade se confirmava como anexo de lazer e refúgio de endinheirados, principalmente da capital federal, eterna ilha de prosperidade indiferente aos apertos no mar de dificuldades da Nação que a cerca.
“Casa de bisavó agora é pousada chique, uma entre tantas que foram se instalando à medida que a cidade se confirmava como anexo de lazer e refúgio de endinheirados, principalmente da capital federal, eterna ilha de prosperidade indiferente aos apertos no mar de dificuldades da Nação que a cerca.”
Na Rua Direita, na Rua da Aurora e em outras ruas e becos de tantas lembranças, muitos dos casarões que abrigavam a alma de um povo com suas tradições e vínculos foram convertidos, no rastro da necessidade financeira de seus antigos donos, em vivendas de veraneio, reformadas para proporcionar todo luxo e conforto a quem pode pagar por isso. Esses redutos, para nós sagrados, sobrevivem ainda com detalhes nos sonhos em que ressurgem direto do imaginário imortal, como cenário de aconchego e saudade ou de arrepiantes histórias de fantasmas protagonizadas por personagens reais imantados com poder sobrenatural.
E numa tarde qualquer de um dia da semana, quando cessa o frenesi de restaurantes, lojas e turistas em busca de atrações, a languidez sufocante das tardes calorentas e de tempo arrastado retorna como se nada tivesse mudado, e se impõe após o almoço simples, de arroz, feijão, carne e “mistura” (salada de vegetais frescos ou legume refogado), com fruta em calda na sobremesa, e já à espera do café com biscoitos ao entardecer. Nesses momentos, passado e presente se fundem, sugerindo que o futuro guardará traços do que somos, e uma voz bem ao longe parece se fazer ouvir:
? Ô, menina, vai ali na farmácia comprar remédio pra mim!
Uau! Quanta coisa boa pra ler! Haja fôlego! Pausei depois de ver os quintais de Pirenópolis da memória de Karlinha, dos passarinhos do Carmo (bravo, Rosangela!). Até onde vai a ressaca da música boa, caro Wander? Vou ali trabalhar mas volto logo…. Abraço a todos!
Karla, que texto maravilhoso! Um relato que nos cativa pela beleza e força de cada palavra escolhida!
Sua narrativa é cinematográfica, pois através dela compomos mentalmente as imagens dos personagens,
dos lugares e das ruas descritas…
Vida longa à Ermira!
Karla Jayme, voltei aos becos e quintais da Cidade de Goiás, senti a tempestade com as rezadeiras queimando ramos a Santa Bárbara e escutei o grito de alguém para ir buscar algo na venda do Quincas, sempre “num pé lá, outro cá”! Sensibilidade, suavidade no entretecer e frases e no contar da infância, estão em seu texto maravilhoso! Amei!
Lindo!!!! Relembrar é viver a suavidade e intensidade de nosso passado.
Que seja sempre assim a vida. Momentos maravilhosos passados, recordados em um presente futuro. Vida!!
Karl a, realmente o mundo é redondo e da muitas voltas,como já diziam os mais velhos e sábios. Lendo e se remetendo no tempo,oh saudade boa,vejo o quanto esta geração perde em muitos parâmetros e ganha não com a mesma proporção. Um sentimento :Saudades. ..
Karlinha, sua linda! É a cara mesmo de Pirenópolis e de quem experimentou o tempo parado daquela época. Sua leitura transforma até o que não era tão bom em lembranças emocionantes e revivê-las me deixou muito feliz! Grata.
Espetacular. Me vi em cada palavra, cada fato citado. Q maravilha reviver tantas coisas boas, sendo embalada por um texto tão bem redigido. Não era de se esperar q fosse diferente, vindo de uma pirenopolina, amante de seus valores e raízes. Obrigada e parabéns Karlota..
Karlota emocionante!!! Saudades da minha vó Dailde, tia Laci… infância que já foi…. maravilhoso.
Texto muito bem escrito! Sensacional! Essa minha tia é fantástica mesmo! Te amo!!!
Em um texto muito bem escrito, fruto de sua inteligência privilegiada principalmente pelo dom da escrita, Karla conseguiu desenhar cirurgicamente o nosso cotidiano de tempo moroso, atormentado hoje, pela explosão de um turismo frenético e descontrolado. Fez uma ponte real, entre o que foi e o que é hoje Pirenópolis. Adorei e parabenizo à Karla, externando a minha admiração.
Karla,que texto lindo! Fiz questão de reler para minha Mãe, que se emocionou e a cada palavra que lia a fazia reviver os bons tempos e a suadade do que já passou.
Belíssimo texto Karla!
Um relato que nos faz remeter ao passado com ar melancólico que não mais paira sobre a nossa linda Pirenópolis. A modernidade trouxe à nossa pacata cidade um fluxo de turismo que aos poucos descaracteriza toda simplicidade vivenciada nos tempos singelos e tão graciosos. Todos nós perdemos…mais as gerações futuras…ah, esta geração… Só ficarão com relatos de tanta formosura. “Poção da ponte” que tanto alegrava nossos dias, hoje também sofre as consequências de um turismo desenfreado. Aquele que hoje pode pagar pelo luxo não saberá jamais quão rico já fomos!
Que saudade!
Em minhas telas risco o meu passado. Talvez banal para uns, mas essa ingenuidade permanece viva!
Obrigada, Karlota! Há tempos venho procurando meios de descrever tantas sensações e sentimentos que se confundem por aqui. Parabéns pelo texto. Não queria que acabasse nunca. Beijo grande!
Aqui você descreveu com amor e poesia nossos dias, nossas lembranças. Muito lindo. Vi e revivi cena a cena. Obrigada pela dádiva de suas letras!
Impressionante e admirável como como Karla consegue nos transportar para esse tempo diferente de Piri. Todas as vezes que vou lá, o que me move é, em grande parte, a vontade de roubar um pouco dessa sensação que o texto trata. De cidade do interior, tão triste e sombria quanto iluminada e borbulhante. Um espetáculo de texto !!!
Carla, já li duas vezes. Sua história nos remete À infância e Seu texto é inebriante.
Adorei.
Mil parabéns!!!
São doces lembranças que também fez parte da minha infância…e por um momento voltei ao tempo…me vi em cada palavra ! Lindo texto
Que bom voltar a ler seus artigos, Karla! Lindo este sobre Pirenópolis. Dá para sentir a magia daquela cidade que já foi um presépio, hoje tomada pelo turismo.
Que texto lindo,Karla!! Um presente para todos nós que vivemos infância tão semelhante em lugares distantes, e experiências tão próximas.Aí vai meu abraço agradecido.
Coisa boa, Karla, obrigado!
Dia desses caminhava pelas ruas de Pirenópolis e me perguntei sobre o que guardariam aqueles quintais que mandavam flores bisbilhotar a rua por cima dos muros.
Karla! Adorei o texto. Adorei encontrar você. Agora vou deliciar-me com seus escritos.
Muito obrigada pela sua alma poeta que me faz pensar, refletir e mudar. Sempre foi assim quando a lia em “O popular”.
Muita luz em seu caminho
Um grande abraço
Olga
Karla me fez voltar à minha infância lá em Correntina. Igualzinho que nem.