Bela como a natureza a fez – não importando muito o gênero que tenha ou possa assumir –, Clara, loira, alta, boca carnuda, entra no quarto vestindo uma lingerie de femme fatale. Vagarosamente, ela se dirige ao barbudo que está algemado na cama, no desespero de quem acaba de tomar ciência que caiu em uma armadilha. Dona da situação, sobe na cama, dá uns tapinhas preparatórios em seu prisioneiro, o amordaça e se prepara para uma doce vingança. Pouco antes, Clara fora espancada por este homem quando ele descobriu que a loiraça era, na verdade,… Cauã Reymond?
Sim, o próprio! Cauã, o galã da TV e do cinema, é Clara, a bela travesti que dá uma lição não só no homem que a agredira, mas no pensamento machista que parece habitar a essência do brasileiro. Tudo é ficção, claro, e Cauã continua poderoso com as mulheres. A provocação que o bonitão faz, porém, é bem real. Ele surge como a exuberante Clara no clipe da canção Your Armies, da cantora Barbara Ohana, mulher do diretor Daniel Rezende, que conduz este trabalho. Confira aqui:
A adesão de Cauã Raymond ao projeto foi total. Além de passar dois meses sem fazer exercícios para perder os contornos musculosos do corpo de sex symbol e campeão de jiu-jitsu e treinar exaustivamente andar de salto alto – ele usa um de 10 cm na pele de Clara –, o ator financiou do próprio bolso parte da produção. Em entrevista logo após o lançamento do vídeo, que teve enorme repercussão na internet, Cauã não se furtou a dizer qual ferida quis cutucar com seu trabalho. A homofobia, que vitima um homossexual ou transexual a cada 28 horas no Brasil, foi seu alvo.
O clipe pode até ser encarado como um mero gesto de marketing, mas uma leitura mais cuidadosa revela algo que vai além disso. Cauã é modelo de masculinidade, para homens e mulheres. Ele faz o herói intrépido em enredos de ação, mocinhos descamisados em novelas de horário nobre, pegadores profissionais em filmes e minisséries. Suas conquistas na vida real incluem algumas das mulheres mais belas do Brasil. Desejado por elas, invejado por eles, personagem frequente em fantasias de todos os sexos, Cauã está no ápice de sua forma física e no topo da carreira.
É justamente esse cara, que poderia sucumbir facilmente a estereótipos tão cômodos, quem pisa com um salto agulha os preconceitos do brasileiro médio, enraizado em uma cultura que desvaloriza a mulher e persegue os homossexuais. Ele se traveste e se torna uma mulher que poderia enganar qualquer machão em uma aventura noturna. No país que ocupa lugar no pódio entre os locais mais perigosos para a comunidade LGBT em todo o mundo, não deixa de ser corajosa a bandeira levantada pelo ator.
Sem preconceitos
Outros galãs já se travestiram em seus trabalhos. Rodrigo Santoro o fez – e muito bem – quando interpretou o travesti Lady Di na adaptação para o cinema do livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella, em um par romântico com o mirrado Gero Camilo. Lázaro Ramos encarnou com maestria o travesti conhecido como Madame Satã, que fez história nas ruas da Lapa, no Rio de Janeiro. De uns tempos para cá, Bruno Gagliasso tem surgido de saia em eventos públicos, defendendo a liberdade não só de se vestir, mas de ser quem desejar.
A “loiraça” Cauã Reymond é uma personagem, mas acima de tudo é um emblema. E estamos precisando de quem marque tal tipo de posição, porque os intolerantes, os homofóbicos, os preconceituosos, os haters (gente que se ocupa em odiar os outros), estes têm ganhado espaço, apoio público, hashtags de homenagem nas redes sociais. Quando um ídolo sai de sua zona de conforto e se expõe em um movimento realizado em prol de algo que poderia simplesmente ignorar, temos a sensação de que nem tudo está perdido e que os radicais encontrarão resistência, sim.
Com seu corset preto cavado e adornado de rendas transparentes, com a ousadia nos olhares e no gestual, com o rebolado de quem precisa provar muito pouca coisa aos outros, o travesti Clara é a criação do ator Cauã. Mas também é o grito do cidadão Cauã, que usa seus perfis em redes sociais para conversar com os fãs que o seguem sobre a violência contra gays, lésbicas, transgêneros, casais homoafetivos, drag queens.
O ator não é só um rosto bonito, portanto. Pelo contrário, ele usa de sua beleza para se transformar na irresistível e sensualíssima Clara. Desta vez, o machismo foi amarrado na cama, amordaçado e tatuado com a pecha de covarde. E quem fez tudo isso foi um dos símbolos da masculinidade nacional. Por essa, os Bolsonaros e Felicianos da vida não esperavam. Parabéns, Clara! Parabéns, Cauã!
Excelente texto!
Vou usá-lo com meus alunos para falar de homofobia.
Obrigada pela contribuição.
Abraço!