Não foi só pelo fato de que entrei em sua loja que fez a peruana sorrir. Mais do que por empatia, ela sorriu porque era uma bela tarde de maio, a cordilheira não estava longe e nos incitava à aventura, não fazia frio nem calor e, o melhor de tudo, o chão estava firme sob os nossos pés. Nenhum gemido, nenhum tremor de terra, pois era uma tarde agradável e limpa: um dia esplendoroso, para ser descrito com reverência.
Eu estava em Lima, no grande mercado de artesanatos, e entrava na primeira loja.
Na realidade, ela sorriu porque era uma vendedora simpática e certamente me considerava um turista esbanjador, razão pela qual o seu sorriso desdobrou-se mais facilmente ainda no seu rosto incaico.
“Cuánto custa?” − e apontei-lhe na exposição um anel de prata, o engaste da joia luzindo de tão delicado, uma peça com refinado acabamento. Ela respondeu, expondo toda a sua graça:
“Cincuenta soles!”
Em seguida, propus um valor menor porque uma amiga havia me advertido no hotel que se devia pechinchar. “Naquele mercado”, alguém acrescentou, “a alma dos negócios é alimentada pelas contraofertas.”
Com pouca conversa e sem muita barganha, acabei comprando o anel, uma síntese lírica do Peru.
Andando pelas vias do enorme estabelecimento, admirei o povo que sobrevivia daquele comércio − uma gente que, no passado, tinha o Novo Mundo sob controle: o ouro, a prata, a mitologia, o Império e, depois, a derrota − que só trouxe submissão, ruínas, esquecimento.
Sem exagero, a população peruana é hoje formada em sua maioria de incas modernos, em decorrência da transformação de sua cultura, que absorveu outros povos e adaptou-se no tempo à redução de sua unidade histórica e humana.
Como sempre, a América Hispânica continua sendo um mundo desconhecido para nós, os brasileiros, que já admiramos com bom cartesianismo a Europa e, agora, adoramos, sem o menor senso do ridículo, os Estados Unidos, o nosso novo colonizador. Todos os dias, sem pedirmos, Tio Sam dá-nos uma receita na música, no cinema, na literatura, no sistema financeiro − e, em consequência, em nosso comportamento diário, mesmo que não a percebamos, essa insídia.
A América Hispânica é um fantasma, pois ela não existe na nossa memória, nem nos nossos sonhos, nem nas nossas expectativas de aprendizagem do outro, um vizinho logo ali, a um toque, a um sopro, ali.
Até hoje, não sabemos soletrar essa América, muito menos cantá-la e entendê-la. Mas eu aprendi a escrever “humitas” − o suco de milho roxo que me foi servido generosamente em Lima; mas eu aprendi ainda a escrever a palavra “moche”, que designa uma arte incaica que esculpe no vaso de cerâmica caricaturas com as mais diferentes expressões; mas eu sei, finalmente, escrever “hermano” − a palavra cuja essência só é descoberta na tolerância, na reverência e no convívio.
No continente, a despeito do modo como o enxergamos − e nem sempre com admiração −, “hermano” é a palavra que nos unifica.
Como saldo do isolamento, não são apenas a língua e o território que nos distanciam. Mais do que isso, para a conversão a um destino comum, é preciso reconhecer a sua literatura, como a de César Vallejo, que escreveu este verso:
“Verde está el corazón de tanto esperar.”
Não importa qual seja a explicação, eu gostaria de pensar na hipótese poética de que a diferença entre o mundo hispânico e o mundo português possa ser descrita também pelos oceanos: os que vivem diante do Pacífico e os que vivem na brisa do Atlântico.
E, de outro modo, em sua magnitude de rochas, a Cordilheira dos Andes, que se alonga pelo continente, tão distante dos nossos olhos, impede-nos para sempre de sonhar com o voo do condor.
(Extraída de Entre as Folhas do Jardim, livro de crônicas inédito)
Muito bom! Gostei D+!
Realmente somos muito estranhos com os nossos vizinhos! Distância simbólica, cultural e social!
Belo texto! As palavras exatas, como em sua poesia.