Dia 25 de junho, sábado à noite, Praça Cívica. No palco, o excelente musical Gonzagão: A Lenda, apresentado pelo irretocável grupo Barca dos Corações Partidos. Tudo ao ar livre, com lugares confortáveis para sentar, céu estrelado, clima bom, com um leve friozinho. O público também estava interessado e, em sua maioria, se comportou muito bem durante o espetáculo. Mas Murphy – aquele da lei em que tudo que pode dar errado impreterivelmente dará – tem um certo amor platônico por mim e é difícil me desvencilhar dele. E eis que ele se posicionou na fila atrás de mim.
O musical começa e tudo vai bem até que o primeiro sucesso de Luiz Gonzaga soa na noite. Os atores, que ensaiaram suas interpretações, que se exercitaram em intermináveis aulas de canto e de respiração para poder estar onde estão, de repente, pelo menos onde eu estava, ganham uma forte concorrente. Uma moça, visivelmente empolgada por lembranças e vivências que eu não sei e não quero saber quais são, solta o gogó e começa a cantar, em alto, muito alto e bom som.
Sou neto de cearenses e desde a infância tenho contato com as canções de Gonzagão. Sei dezenas delas de cor. Isso, porém, não me autoriza a achar que sei cantá-las, ainda mais em público. No máximo, me arrisco a entoá-las debaixo do chuveiro, com a leve desconfiança de que ainda devo incomodar algum vizinho. Sei que em shows é normal o público cantar junto, com os artistas no palco até pedindo que isso aconteça. Em um musical – que é uma peça de teatro, é bom lembrar –, porém, tais expansões ficam mais complicadas.
No caso de Gonzagão: A Lenda, por exemplo, houve mudanças no ritmo das músicas, em seus contornos para que pudessem se adequar às ideias dramatúrgicas concebidas pelo autor do trabalho, João Falcão. Isso inclui mescla de canções, interrupções para falas, entonações surpreendentes. Não é aquele sucesso que tocava no rádio. É a homenagem a ele no palco. Quando a moça se esquece disso, ela atrapalha os outros que estão vendo a peça ao seu lado. A “cantora” fechava os olhinhos e mandava brasa, recebendo olhares de reprovação que, claro, ela não percebia.
Esse tipo de gente sem noção eu apelido de “pesadelos”. E eles estão na plateia, nas audiências de todo o Brasil, nos mais diferentes tipos de apresentações. Quando tem música, o gogó de um inconveniente se faz ouvir. Quando não tem, é a luz do celular que surge em tudo quanto é lugar. Os mais ousados chegam a tirar fotos e gravar vídeos, levantando os celulares e atrapalhando a visão de quem está atrás, tudo para “postar” e “compartilhar” ou para fazer o tal do check in nas redes sociais, maneira de passar uma invejinha nos seus amigos e, sobretudo, em seus desafetos.
Já foi feita até uma campanha em que atores consagrados pedem que as pessoas que vão assistir suas peças não só desliguem o toque do celular, como também sua luz de led, pois aquele feixe de luminosidade no meio do público atrapalha quem está atuando no palco.
A convivência coletiva tem enfrentado muitos desafios em um tempo em que a individualidade dá o tom nos mais diferentes campos, dos mais triviais às instâncias decisórias. Isso fica patente quando alguém se esgoela porque se acha no direito de cantar desafinadamente, mesmo que isso atrapalhe os outros. Os outros? Os outros que se danem! Os outros, que também saíram de casa para ver uma boa peça de teatro, uma palestra, um filme, que se lasquem diante de gente que não conhece os limites, seus e os de quem está ao seu lado.
A moça da Praça Cívica adora Luiz Gonzaga, tem paixão pelo trabalho do Rei do Baião. Que bom, eu também. Temos algo em comum. Até por isso estávamos os dois lá para o espetáculo. Mas eu não cantei no ouvido dela, respeitei seu amor por Luiz Gonzaga e não impus a minha terrível interpretação de suas canções. Ela, porém, não teve a mesma delicadeza comigo. Era um pesadelo!