− De manhã, eu sou da mesma opinião que meu jornal, mas à noite eu penso aquilo que eu quero.
Proferida com toda a desfaçatez por Nathan, um dos personagens do romance Ilusões Perdidas, de Balzac, a afirmação acima dá a medida exata de como o autor da Comédia Humana enxergava este novo ator social, o jornalista, que desponta na França na primeira metade do século 19. O retrato, como se pode perceber, não é nada edificante.
Da longa galeria de jornalistas que desfilam ao longo da trama, não escapa um – todos são tipos de caráter maleável e duvidoso. E dispostos a alienar seu talento e sua consciência a quem lhes pagar mais.
Nathan, por exemplo, é um crítico literário e teatral cujos artigos, como se pode deduzir da frase transcrita no início deste texto, não espelham as suas próprias ideias, mas seguem as conveniências do jornal onde trabalha. Seu chefe, Finot, é outra espécime dessa fauna escorregadia que povoa as redações da capital francesa: disposto a abrir um novo jornal, ele ainda não sabe se a linha editorial será ultra (quer dizer, partidária dos legitimistas, defensores da realeza absolutista) ou liberal (cujos adeptos lutavam, senão pela república, ao menos pela implementação de uma monarquia constitucionalista na França). Sua ideologia política espelha suas finanças, não suas convicções.
A eles, se junta o protagonista do romance, Lucien de Rubempré, de moral tão ondulante quanto seus cabelos cacheados que encantam mulheres e homens. Lucien é outro capaz de dormir republicano e acordar monarquista, conforme a temperatura política do momento, e de publicar uma crítica demolidora a respeito de um romance escrito por um amigo, mesmo estando consciente da sua inegável qualidade estética.
É verdade que as traquinagens dos jornalistas narradas por Balzac parecem, aos olhos de hoje, quase pueris diante do imenso poderio que a indústria dos meios de comunicação ganhou em todo o mundo. Balzac descreve o jornalismo ainda na sua infância – as redações eram compostas por escritores ou aspirantes a sê-lo, estudantes e personagens da política que não encaravam o ofício como uma profissão. Tanto que, no romance, muitos dos que se dedicavam à atividade complementavam seus parcos ganhos revendendo livros e ingressos de teatro que recebiam de brinde (embora a penúria econômica da grande maioria dos profissionais de imprensa continue a mesma desde aquela época).
Porém, por detrás desse amadorismo, escondia-se um poder que Balzac já intuía. Se o próprio romancista manifesta abertamente, às vezes de forma bastante virulenta, as suas reservas diante da imprensa − qualificada por ele como uma “grande praga” ou o “câncer” que vai devorar a França −, não deixa de admitir que o jornalismo é uma forma nova e inelutável de poder no mundo moderno, sobre o qual todo esforço de controle e censura está fadado, mais cedo ou mais tarde, ao fracasso.
No prefácio que escreveu em 1843 para a obra, Balzac reconhece que o Jornal – que ele grafa com inicial maiúscula – é a voz do seu século. E o coloca no mesmo panteão de grandes nomes como Voltaire, Rousseau, Chateaubriand e Benjamin Constant.
Balzac, na realidade, não condenava o jornalismo em si, mas a venalidade de uma imprensa descomprometida com o que deveria ser o seu verdadeiro papel: um instrumento de esclarecimento e emancipação do público. Por isso continua tão atual o quadro devastador que ele apresenta das entranhas da máquina de corrupção em que havia se convertido a imprensa parisiense.
Mais do que o prazer estético e o conhecimento histórico dos primórdios da imprensa que a leitura de Ilusões Perdidas nos proporciona, percorrer as páginas desde grande clássico neste século 21 significa para nós, jornalistas, uma oportunidade para uma reflexão ética sobre nós mesmos, sobre o sentido da nossa atuação no mundo. E sobre o que, afinal de contas, queremos ser.