Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo afirmara certa vez que “toda ação começa mesmo é com uma palavra pensada”. É assim ou oxalá fosse? Pensador da ação, narrador de si mesmo, matutador dos conflitos internos, investigador das paixões de quem se atreve a agir, Riobaldo também reiterava sempre que “viver é muito perigoso”, algo que decantou de suas matutações sobre as experiências do atuar em meio a outros atuantes, em um mundo que é casa e não é. Aprendeu antes de tudo que a peleia articula não só um e outro, mas um e si mesmo, um e as forças que excedem a outro e um.
De quem se atreve a agir é requerido antes de tudo coragem, sua mais própria excelência ou virtude, “a coragem melhor da valentia produzida”. O filósofo Heráclito julgava que poderíamos dividir os humanos em dois grupos muito determinados: os que buscam antes de tudo a grandeza em seus feitos e os que se fartam como o gado – ecoou Riobaldo: “o bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come”. Ambas possibilidades se abririam a homens e mulheres de todos os tempos, e o que em grande medida definiria o rumo de cada um seria o grau de inquietação com a própria mortalidade. A ânsia por desdobrar eventos no mundo proviria do melancólico desassossego com a própria transitoriedade, ou com a fragilidade de uma vida cuja mortalidade não é redimida pela reprodução da espécie.
Na Ilíada, antes de se associar a seus pares contra Troia, Aquiles é informado por sua mãe de que sua vida será curta, ainda que gloriosa, caso se engaje na guerra. Sem titubeio, diz preferir uma vida breve, tornada imortal pelo caráter radiante de seus feitos, a uma vida longa, tranquila e fadada ao esquecimento – aquela que vivem os de cujos nomes não lembram os bisnetos ou sequer os netos. A imortalidade mediante a memória de grandes feitos parecia o remédio mais digno para uma vida cuja grandeza não é interdita por sua fugacidade e sua fragilidade. Não escapou a Platão, todavia, um movimento decisivo na Odisseia, também de Homero, quando Ulisses, ao encontrar Aquiles no Hades, o mundo subterrâneo para onde seguiam os espectros de todos os mortos, louva a notável grandeza dele ainda ali. A resposta de Aquiles não poderia ser mais lacônica: preferiria viver como escravo de um homem pobre a reinar entre aqueles que já nada eram…
Isto não parece ter demovido multidões de pessoas do colocar-se em risco para engendrar algo de próprio por meio da ação. Agir significa, antes de tudo, dar início, fazer surgir os eventos e suas experiências correlatas no mundo que compartilhamos. Agimos porque não estamos sós, para estabelecer relações, porque somos iguais e ao mesmo tempo distintos, porque padecemos de estranheidade em um mundo que nos precede e nos sucederá. Agimos para fazer do mundo uma casa, para tornar um mero viver em uma vida própria, para forjar realidades, porque nos julgamos tais e tais e não uns quaisquer; porque a novidade que somos parece demandar a novidade que ensejamos. Assim na ética, assim na política.
“Agimos porque não estamos sós, para estabelecer relações, porque somos iguais e ao mesmo tempo distintos, porque padecemos de estranheidade em um mundo que nos precede e nos sucederá”
A desconfiança dos filósofos não é mesmo trivial. Agimos sempre em uma rede de relações que faz com que cada ato nosso não apenas seja em grande medida imprevisível e ilimitado, mas também com que suas consequências possam ser insondáveis e irreversíveis – “a ação escorregada e aflita, mas sem substância narrável”. Podemos dizer o que pretendemos quando iniciamos algo, mas os homens de ação são também para si seus próprios desconhecidos e revelam a si próprios antes no que fazem, ainda que também no que dizem pretender fazer. O certo, em todo caso, é que jamais somos soberanos do que desencadeamos e que dependemos dos compromissos que estabelecemos com nossos pares para aspirar qualquer eventual sucesso nesse empreendimento tão temerário.
Não obstante, a própria ideia de que somos agentes e não meras vítimas do que desencadeamos supõe que nos vinculamos deliberadamente a nossos malfeitos e bem-feitos por termos preferências e avaliarmos possibilidades, porque não apenas calculamos, mas antes pensamos, julgamos e escolhemos – muitas vezes como rios, a mal nem ver as árvores das beiradas. Desde seus primórdios, a ética, compreendida como o âmbito no qual refletimos sobre nossa ação individual e estatuímos princípios ainda que provisórios para guiar nossas ações, supõe que algo nos é dado escolher, e que nossa liberdade não perde sua realidade apenas por ser precária – “a liberdade é assim, movimentação”. Também na política está em jogo a capacidade de entrar em acordo acerca dos limites e possibilidades da vida ativa em comum, de deliberar, persuadir e se comprometer com cursos comuns de ação, que jamais fecham as portas para o novo sem o qual a vida política fenece.
Assim, por ora, podemos reter que nem toda ação começa com uma palavra pensada, mas também que é certo que não nos constituímos como alguém que vive uma vida própria, singular, sem que matutemos sobre o que pretendemos fazer, sobre quem desejamos ser e com quem desejamos viver, sempre em tentamento.
A alternativa a isto talvez seja o fartar-se como o gado, a quem não podemos censurar não ter escolha. Ao fim e ao cabo, cada indivíduo que se constitui como pessoa não será mais que a estória que se contará dele, palavra pensada, e que será para os pósteros o próprio de sua vida própria – a que quer, de cada um, coragem.
Muito inspirador esse diálogo entre a literatura e a filosofia, entre Riobaldo e Adriano, entre Guimarães e Hannah, porque “o espírito da gente é cavalo que escolhe a estrada” . Pensei como seria se você continuasse essa travessia por todo o Grande Sertão: Veredas, é preciso coragem…Um grande abraço