No discurso que proferiu durante a cerimônia em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em dezembro do ano passado, na Academia Sueca, em Estocolmo, a jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch lembrou a forma como Flaubert costuma qualificar a si mesmo, como um “homem-pena”, para dizer que ela era uma “mulher-ouvido”. Pois da mesma maneira que o romancista francês, autor de Madame Bovary, resumia sua existência ao ofício da escrita, Svetlana – que acaba de participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – dedica-se, primordialmente, à arte de escutar.
Ouvir as pessoas, deixar-se enredar por suas histórias. É deste exercício cada vez mais raro na nossa época – em que prevalece uma gritaria na qual os indivíduos têm sempre algo a dizer, porém permanecem surdos e impenetráveis a seus semelhantes – que Svetlana extrai a matéria-prima de sua literatura. A voz solitária, como ela própria confessa, é a sua “maior paixão”, seu “maior amor”. A fala humana é como o universo de fantasia dos contos de fada – território de fascínio e encantamento, mas também de assombro e horror.
Essas vozes solitárias que Svetlana esforça-se em ouvir – e às quais ela materializa em um impressionante e esmerado trabalho de reescrita – compõem o painel de Vozes de Tchernóbil, seu livro mais conhecido e publicado no Brasil recentemente. Ao longo dos mais de cem monólogos incluídos na obra – da gente simples das aldeias atingidas, passando por cientistas, historiadores, políticos, aos bombeiros e soldados mobilizados – a catástrofe nuclear ocorrida em 1986 na usina nuclear de Tchernóbil, na Ucrânia, ganha outra dimensão.
A catástrofe
A explosão ocorrida em 26 de abril de 1986, na usina nuclear de Tchernóbil, na Ucrânia, provocou uma catástrofe sem precedentes, que lançou partículas radioativas não só sobre a atmosfera da então União Soviética, mas também de grandes áreas da Europa. Até hoje as cifras são desconhecidas. Na pequena Bielorrússia, com uma população de 10 milhões de habitantes, calcula-se que 2,1 milhões de pessoas, das quais 700 mil crianças, permanecem em território contaminado pela radiação. A mortalidade na região por doenças oncológicas aumentou, depois da tragédia, em mais de 20%. Em 2006, o Greenpeace calculou em 100 mil o número de vítimas do acidente.
Além de conferir uma face humana às estatísticas envolvendo o acidente – os milhares de mortos, a contaminação de um imenso território onde vivem milhões de pessoas, números sem dúvida espantosos, mas logo esquecidos por um público anestesiado pelo cardápio diário de tragédias que a mídia lhe oferece –, o que os testemunhos colhidos por Svetlana proporcionam é uma reflexão sobre os limites do poder do homem. Render-se à sedução da onipotência cobra o seu preço – e, como o prova Tchernóbil, ele costuma ser alto.
Um historiador ouvido por Svetlana diz que Tchernóbil colocou em xeque o credo pagão soviético, segundo o qual “o homem é soberano, é a joia da criação. É o seu direito fazer com o mundo o que lhe apraz”. Na verdade, esse credo não é específico da cartilha do regime socialista que ruiu em 1989 – e que a explosão de Tchernóbil contribuiu para acelerar –, mas constitui as convicções mais arraigadas da consciência moderna, não importa a ideologia, se capitalista, se comunista.
Pela técnica, o ser humano dominou e transformou a face da Terra e, não satisfeito, se lançou ao universo. Contudo, essa potência criadora capaz de realizar maravilhas – o dom que, na mitologia grega, Prometeu concedeu aos homens – também pode se revelar mortalmente destrutiva, a ponto de ameaçar a própria existência humana.
“Com Tchernóbil, o homem levantou a mão contra tudo, atentou contra a criação divina, onde vivem, além dos homens, milhares de outros seres”, escreve Svetlana. Porque o que causa espanto diante da catástrofe de Tchernóbil não é só o desprezo dos dirigentes soviéticos e da sua máquina administrativa às milhares de vidas humanas, sacrificadas em nome da preservação de um regime em decadência.
Não é apenas a ineficiência brutal de um sistema que permitiu que o acidente ocorresse, ignorando procedimentos básicos de segurança. E tampouco a arrogância patética de uma mentalidade militar e burocrática ainda contaminada pelo stalinismo, que procurou a todo custo minimizar as consequências da explosão nuclear. Para essa mentalidade, diz ironicamente um cientista entrevistado por Svetlana, a física deveria se curvar às leis de Marx.
O assombro maior diante de Tchernóbil – manifesto nas vozes de homens e mulheres, velhos, jovens e crianças que ecoam no livro – reside na perspectiva de viver em um mundo que, por conta da ilusão humana acerca da sua própria onipotência, se tornou irreconhecível.
“O que se passou aqui é algo desconhecido. É outro tipo de horror. Não se vê, não se ouve, não tem cheiro nem cor. No entanto, nós mudamos física e psicologicamente. Alterou-se a fórmula do sangue, o código genético, a paisagem. Independente do que pensamos ou façamos Trecho de Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch”
Este espanto está expresso no relato da camponesa que não entende por que, depois do acidente radiativo, as cristas das galinhas tornaram-se negras e o leite para fazer queijo não azeda, porque vira um pó branco. Também surge na voz da professora ao relatar a rotina das crianças das aldeias contaminadas, proibidas de nadar no rio, colher flores ou subir nas árvores – a natureza se tornou um lugar hostil, ameaçador.
Aparece ainda nos testemunhos das donas de casa que não compreendem por que as regras mais elementares da convivência e da hospitalidade começaram a ser rejeitadas – por que todos aqueles visitantes inesperados (funcionários do governo, agentes de saúde, jornalistas) recusam-se a provar da comida e até a beber a água que elas lhes oferecem?
Mesmo o dirigente partidário que tentou esconder a tragédia, até da própria família, não esconde a perplexidade de ter de conviver agora com a realidade do câncer linfático da neta. A mesma atitude transparece no doloroso depoimento da jovem mulher cujo marido, um bombeiro escalado para apagar o incêndio do reator, teve o corpo consumido pela radiação e agonizou até a morte de forma inominável. E também evidencia-se no relato da mãe que deu à luz uma menina gravemente afetada pela radiação e, ao buscar consolo junto a um padre, ouviu dele que deveria rezar por seus pecados. Mas de que sou culpada?, indaga-se a mulher.
“Tchernóbil é a pior de todas as guerras. O homem não tem salvação em parte alguma. Nem na terra, nem na água, nem no céu”, resume uma das pessoas ouvidas por Svetlana. De fato, admite a autora no capítulo em que dialoga consigo mesma, depois de Tchernóbil já não podemos crer, como os heróis de Tchecov, que a vida daqui a cem anos será maravilhosa. Mas se o futuro está mergulhado nas sombras, é nossa tarefa pelo menos enfrentar o presente. E é a essa missão que se lança, com inegável talento e coragem intelectual, essa extraordinária escritora chamada Svetlana Aleksiévitch.
O livro
Svetlana Alekesiévitch levou dez anos entrevistando cerca de 500 pessoas afetadas, direta ou indiretamente, pela catástrofe de Tchernóbil. Deste material, ela selecionou os 107 monólogos que compõem o livro. A Companhia das Letras adquiriu no Brasil os direitos da obra da escritora e jornalista e, além de Vozes de Tchernóbil, lançou este mês A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, que traz relatos de mulheres que se engajaram como soldados na Segunda Guerra Mundial.