Nos anos em que vivi em Paris, morei na Thouin, uma rua bem curtinha e graciosa, próxima ao Panthéon e ao Jardin des Plantes, sem mencionar ainda que, para o meu gáudio, logo depois de algumas quadras, eu encontrava os portões do Jardin du Luxembourg ? um parque para os dias ensolarados e a alegria dos passarinhos ? e a azáfama do boulevard Saint-Michel.
Por causa de seu nanismo, a Thouin era localizada nos mapas com certa dificuldade ? uma rua, no entanto, que os carteiros apontavam com ligeireza. Naquela época de exílio e de frustrações políticas, todos os que viviam em Paris, os expatriados e os estudantes estrangeiros, todos nós, incondicionalmente, amávamos os carteiros indianos e argelinos. Na ânsia de receber notícias diárias, as boas e as más, eles eram os deuses da tarde quando paravam em frente aos escaninhos com a mochila repleta de cartas e pacotes.
Eu morava no Quartier Latin, um dos mais antigos da cidade, vivendo uma felicidade possível para um estudante bolsista. Muito elegante e charmoso, o bairro oferece tantas atrações ? cafés, museus, livrarias, igrejas, monumentos, parques ?, que era impossível resistir à tentação de passar um dia inteiro flanando…
O prédio onde morava fica numa quadra simpática e diminuta, tendo nas laterais, de um lado, a Mouffetard e, de outro, a Lemoine; no fundo, a Place de la Contrescarpe, cujo café La Choppe, que agora tem outro nome, oferecia à noite um balcão de pessoas surpreendentes, sempre dispostas a uma boa conversa.
Esse prédio data do século 18, é sustentado por vigas de madeira que ficam à mostra e tem escadas de ferro com degraus revestidos de carpete. No passado, foi um convento que abrigava boas moças.
Do terceiro andar, de uma mesa posicionada junto à janela, gostava de observar, nos dias em que estava entediado, a rua lá embaixo.
A rua do Cardinal Lemoine, uma homenagem da cidade ao cardeal francês Jean Lemoine.
Na minha experiência de morador de Paris, essa rua faz parte de algumas mitologias secretas e preciosas, entre as quais a de uma grega de olhos oliva, com quem bebia armagnac, conversava sobre a poesia de Kaváfis e jogava sinuca.
Sobretudo nos dias de inverno, quando o mundo era feito de um manto cinza que tudo encobria, eu observava os transeuntes. Por causa da umidade e do frio, as velhinhas que tinham acabado de sair da estação do metrô, situado na esquina da Monge, subiam a rua com dificuldade. Encarquilhadas, vestidas com casacos escuros, um lenço amarrado à cabeça e segurando uma sacola cujo peso fazia-as inclinar para um lado, elas se arrastavam pela calçada, os passos trôpegos ? às vezes, uma escorregava, mas não caía, pois a ladeira era amiga.
Daquele ponto de observação, como um voyeur, tive muitas visões do cotidiano da cidade, como a vez em que a polícia com a raiva de sempre espancou estudantes que participavam de uma manifestação; em outra ocasião, presenciei dois cães dobermann atacarem um africano que vendia artesanato, deixando-o acuado no vão de uma porta; num anoitecer, reconheci entre os pedestres o querido amigo Samuel Costa, com a sua inseparável Nikon, dirigindo-se ao estúdio onde eu morava; e, enlevado, prestava sempre atenção ao alarido das meninas em flor quando elas voltavam do colégio…
A despeito de tudo, eu gostava de admirar as velhinhas simpáticas. Não sabia de onde elas vinham ? mesmo as mais coquetes que se apoiavam numa bengala ? nem se retornavam de uma jornada extenuante. No meu espírito, porém, ficava a impressão de que todas procuravam um refúgio aquecido e uma tigela de sopa. Provavelmente, em algum canto sombrio de seu lar, um gato ansiava por um pires de leite ou por uma cota de ração…
Como cheguei muitos anos depois ao Quartier Latin, não pude presenciar, do alto da minha janela, o escritor Hemingway e a sua mulher Hadley subindo a Cardinal Lemoine, em direção ao prédio de número 74 que, por uma agradável coincidência, era vizinho ao meu…
(De Entre as Folhas do Jardim, livro de crônicas inédito)
Ai, meu amigo, o seu relato tão preciso desse recanto de Paris me fez sentir uma enorme saudade de lá.
…Ermira também flanou pelo Quartier Latin…
AL-Braços
Lindo texto, Luiz! Lembranças de Paris são sempre bem-vindas. Beijos. Saudades de você.
Muito lindo seu artigo Luís. Dá uma inveja danada esses anos em Paris e uma saudade de um tempo privilegiado e mágico de estudante.