Agimos porque nascemos, e pensamos porque morremos, já foi dito. Mas talvez seja metafísica demais pensar em coisas tão tamanhas com tão tamanha resolução – não afina com o “morremos”, que deveria ser já por si suficiente razão para mantermos a metafísica no horizonte do pensar em nada. No intervalo demarcado pelos extremos do nascer e do morrer, decorrem pensamentos e ações que se retroalimentam e se desencaminham. As ações desatadas criam vínculos, rompem outros, estabelecem relações, também do agente consigo mesmo. Seus sucessos, seus malogros, seus padecimentos ante a contingência e o modo como as matuta, assimila e recorda constituem o campo de experiências que entretecem a narrativa de um alguém a quem identificamos como uma pessoa.
Esses sucessos, malogros e padecimentos atingem igualmente a nossa potência de pensar, de matutar, e são motivo justo para nos fiarmos novamente em Riobaldo: “Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado, mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo”. Esse modo de cada um só não redemoinha no pesadelo da irrealidade e na vertigem da verdade se pode contar com o modo próprio de entender de muitos outros, com quem intercambiar seus modos próprios. Sem isso, são como arapongas marteladoras.
O dogmatismo, o fascismo e seus afins provêm em grande medida da cegueira para a própria precariedade e para a consequente contingência das perspectivas próprias, assim como da inconformidade com a pluralidade das mulheres e dos homens; em outra medida, provêm da solidão acompanhada dos que se amontoam, se acalentam, gritam em uníssono, mas não intercambiam com outros modos próprios de ver, que não possuem sequer uma experiência do estar junto que suponha o sair em visita a perspectivas outras. A internet – que fora outrora o sonho de esfera pública para muitos entusiastas do novo mais novo, inclusive pensadores de notável estatura – ofertou a esses misantropos o púlpito de onde podem casmurrar suas convicções vociferantes no tubo ecoante da rede, onde podem simular um dizer verdadeiro apenas por possuírem um ódio enfático a toda alteridade. O fascismo ganha força mesmo é na solidão acompanhada, no amontoar dos aferrados.
“O fascismo ganha força mesmo é na solidão acompanhada, no amontoar dos aferrados”
No ramerrão da vida, as crenças precárias que constituem o modo de cada um frequentemente vêm esquecidas de sua origem e de sua precariedade e fazem as vezes de verdade, na urgência do decidir, do fazer e do se aquietar – e “dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra”. É aí também onde o matutar pode se embeber e romper a dura casca dessas cristalizações que apequenam e afinal obstruem o matutar.
Muitos pensadores acreditaram que tempos críticos são propícios ao vicejar do pensamento, pois aí o refletir sobre o modo de cada um assume ares de urgência e seus desdobramentos a cara da necessidade. Mas não seria como querer se levantar puxando os próprios cabelos? E não é em tempos de crise dos espaços de efetiva interação que os tipos mais obtusos erguem-se da obscuridade de suas catacumbas para ofertar suas verdades de araponga e seu ódio à diversidade?
Parecem, todavia, ter alguma razão esses pensadores quando insistem em que a compartilha do próprio do pensar – no qual as conclusões ocupam o lugar menos importante e as dúvidas pungem – possui a capacidade de contaminar alguns com a perplexidade, de abrir fissuras no mundo apequenado dos aferrados. E por isto se puseram a escrever, por vezes alternando “temerário otimismo” com “temerário desespero”. O matuto também não matuta em solidão, poder-se-ia redarguir? A natureza dessa solidão vale um dedo a mais de prosa, mas tomar algo como digno de meditação demorada já é matar no ninho a araponga interior – aquela avidez por tilintar sem maturar, como a das que gritam “inventamos a felicidade” e amiúdam o mundo com seus pulinhos.
“A compartilha do próprio do pensar possui a capacidade de contaminar alguns com a perplexidade, de abrir fissuras no mundo apequenado dos aferrados”
“Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”, dizia Riobaldo. Esta coluna, espaço aberto (e é bom desconfiar de todo pensamento que não se tenha a céu aberto, como bem dizia Nietzsche em Ecce homo), empenhada ao matutar sobre o agir, se dedicará doravante ao pensar demorado sobre o que estamos fazendo, em polifonia mais que em solo ou uníssono, e para tanto serão necessárias outras vozes, que já estão reclamadas. Também porque, como o viver e o agir, pensar é por demais perigoso e a solidão compulsória azeda aventura tão venturosa. Como pano de fundo, a assunção da dignidade da política como âmbito privilegiado para intercambiar o modo de cada um, alargar a própria mentalidade e fazer da pluralidade não o inimigo a ser combatido, mas a boa nova a ser celebrada.