A linha é tênue. Quem se aventura a escrever, corre riscos. Quem ousa fazê-lo equilibrando-se na fronteira entre realidade e ficção, é quase um suicida. É preciso ter coragem e cuidado extremo. Gay Talese, em 65 anos de carreira, desviou-se de todos os perigos nessa missão. Agora, aos 84 de idade, parece ter sido alvejado. O homem que é considerado mundialmente como um dos maiores repórteres das últimas cinco décadas se vê envolvido em um desconcertante caso que pode abalar a credibilidade construída com livros fabulosos e uma carreira brilhante em alguns dos grandes veículos de comunicação dos EUA.
O livro-reportagem The Voyeur’s Motel (algo como O Motel do Voyeur) seria a cereja do bolo da trajetória de Talese, autor de títulos como O Reino e O Poder (sobre os bastidores nem sempre construtivos do jornal The New York Times) e Honra Teu Pai (em que mergulha no coração da máfia). Ele antecipou um capítulo do novo trabalho, publicando-o na prestigiada revista The New Yorker, templo do New Journalism, movimento que deu novo impulso ao chamado jornalismo literário ou jornalismo autoral, que teve no próprio Talese um de seus maiores representantes.
O texto causou tremenda agitação. Um acontecimento que levou o diretor Steven Spielberg a comprar os direitos da obra para o cinema e o mercado editorial a eleger este como o livro do ano. Mas eis que o impensável aconteceu. O trabalho daquele que fez o que é considerado um modelo de perfil jornalístico – no texto Frank Sinatra Está Resfriado, Talese não entrevista o cantor, mas dá dele, pela observação próxima, o melhor retrato já feito sobre o artista – estava em xeque. O mais impressionante veio depois: o próprio Talese renegou o livro, admitindo que ele não traz uma apuração jornalística suficiente para merecer o crédito esperado.
Essa história, como bem cabe em se tratando de Gay Talese, é longa. Começa há mais de 35 anos quando, em 1980, ele recebeu uma carta anônima de um sujeito que se declarava um voyeur, um espião da vida sexual alheia. Naquele momento, o jornalista lançava uma de suas obras-primas, o sedutor A Mulher do Próximo, em que desbasta a floresta densa e misteriosa dos comportamentos de alcova dos norte-americanos. O remetente da carta era dono de um motel nos arredores de Denver, no Colorado, e havia construído uma estrutura de aberturas, frestas e portas falsas para ver seus clientes em pleno ato, com todas as suas fantasias, esquisitices e até brutalidades.
O dono do motel anotava tudo em uma espécie de diário, iniciado ainda em 1966. Talese pediu provas sobre a veracidade daqueles relatos logo no início de seu contato com a fonte bisbilhoteira e encontrou contradições. Os registros começam em 1966, mas o homem só havia comprado o motel em 1969. No texto da The New Yorker, Talese dá essa informação e com isso justifica sua decisão de só publicar os relatos feitos a partir da data em que o homem teria adquirido o negócio. As explicações do homem para tal prática também foram vistas com certo ceticismo por Talese, que não acreditou em suas alegadas “intenções científicas” para ficar olhando os outros na cama.
Apesar de tudo isso, Talese deu crédito à versão das anotações em larga medida. Teve motivos para isso. O jornalista foi ao motel e ele próprio, ao lado do voyeur, fez uso dos artifícios de espionagem enquanto casais estavam nos quartos. O jornalista manteve sua apuração até meados dos anos 1990. Ele também confirmou a história mais macabra do caso, quando um viciado em drogas matou sua companheira dentro do motel, crime testemunhado pelo dono do local. Ele, por sua vez, não denunciou o caso com medo de também ser punido por invadir a privacidade alheia.
Este foi um dos grandes motivos, aliás, para que só agora o voyeur aceitasse dizer quem era e autorizasse Talese a escrever sobre ele e onde ficava o motel. Isso aconteceu apenas em 2013, quando a pena daquele assassinato testemunhado prescreveu. O camarada se chama Gerald Foos e o motel já foi demolido. O problema é que muito do que ele escreveu em suas anotações, material que serviu de base para o livro-reportagem, não se sustenta a uma checagem mais apurada. O jornal The Washington Post se deu este trabalho e averiguou que várias datas registradas nos diários do voyeur equivalem a períodos em que ele estaria fora da cidade.
Perfil
Gay Talese nasceu no Estado de Nova Jersey, em 1932, e fez carreira em veículos de Nova York. Trabalhou como redator e repórter em jornais como The New York Times (entre os anos de 1955 e 1965) e como repórter especial de publicações como a revista Esquire, outro templo do Novo Jornalismo norte-americano. Depois investiu na carreira de autor de livros, fazendo apenas trabalhos esporádicos para a imprensa.
O tiro de misericórdia na credibilidade da fonte de Talese foi a confirmação de que o motel foi vendido em 1980 e recomprado por Foos apenas em 1988. O livro-reportagem , porém, coloca o voyeur como proprietário da casa durante todos esses anos, com uma série de episódios que teriam ocorrido nesse período. Episódios que, desconfia-se, foram inventados por Foos e relatados como verdadeiros a Talese. O jornalista, por sua vez, também acreditou no que ouviu nas conversas com Foos e no que leu em seus diários dos anos 1980.
Talese vem dando entrevistas em que se mostra errático quanto à obra. Num primeiro momento, minimizou o problema. Depois, confrontado com as provas, reconheceu que poderia ter cometido um escorregão e passou a criticar duramente o próprio trabalho, se recusando a promovê-lo e falando em correções em uma segunda edição. No final da última semana, porém, nova reviravolta. Talese, em um programa de TV, afirmou que conversou com o homem que comprou o motel de Foos nos anos 1980 e este lhe disse que o antigo proprietário continuava a frequentar o lugar, havendo, portanto, a possibilidade de ele ter dado continuidade à sua espionagem durante o período em debate. Isso, agora, ficará difícil de comprovar.
A questão é que O Motel do Voyeur tem cada vez mais dificuldades de figurar entre os clássicos do jornalismo literário como as obras anteriores do autor pela simples razão de que deixou de pertencer ao discurso comprovável do jornalismo, recaindo nele a quase certeza de que se apoiou na imaginação plena que cabe à ficção. As idas e vindas do autor deixam tudo ainda mais nebuloso. Já há críticos dizendo que todo esse barulho em torno do trabalho deixou de lado as questões éticas e jornalísticas envolvidas e adentrou o terreno do puro marketing editorial.
A polêmica do novo livro
Nos EUA, O Motel do Voyeur, de Gay Talese, será lançado por um selo de porte médio, o Grove Atlantic. No Brasil, quem edita as obras do autor é a Companhia das Letras, que agendou o lançamento do livro por aqui para setembro. A editora, porém, está atenta às controvérsias que vêm cercando o trabalho e as mudanças de posição do escritor quanto a ele, com a possibilidade até de inclusão de advertências ou correções na segunda tiragem por lá. Não parece haver muitas dúvidas, porém, quanto ao sucesso de vendas que ele será quando chegar às livrarias.
E como encarar Gay Talese a partir de agora? Estaria este profissional icônico na berlinda e seus trabalhos anteriores também devem estar sob suspeita? Não, de forma alguma. Isso seria falta de conhecimento a respeito do jornalismo praticado por ele ou simplesmente má-fé. O fato de os problemas de O Motel do Voyeur terem tamanha repercussão deve-se justamente à honestidade e à competência de seu autor, que não costuma cair em tais armadilhas. Com todo seu talento, ele não está imune a equívocos e pode ser que um dos grandes tenha ocorrido agora. É preciso salientar também que, se houve má intenção envolvida no episódio, esta partiu da fonte Foos e não de repórter Talese. O máximo que se pode dizer do jornalista é que teria sido “descuidado”.
Gay Talese é dono de um dos textos mais elegantes não só de sua geração, mas de todo o jornalismo moderno. É criativo, bom de ler, bem-humorado, despudorado, de uma correção ímpar. O autor difere, por exemplo, do experimentalismo de Tom Wolfe, da obsessão formal de Truman Capote ou do naturalismo mais objetivo de John Hersey. Títulos como Radical Chic (Wolfe), A Sangue Frio (Capote) ou Hiroshima (Hersey) são formidáveis, mas Talese sempre mostrou uma alternativa de mesmo nível ou até melhor que a apresentada por esses gigantes. Talese fez de seu nome um estilo inconfundível, seja falando do ator Peter O’Toole ou de índios canadenses entregues à bebida.
Ler Gay Talese continua a ser uma aula e um prazer. Ler Gay Talese continua a figurar no dever de casa de todos que sonham atuar no jornalismo. Ler Gay Talese é entrar em espaços vedados à esmagadora maioria, é conhecer a observação aguda e inteligente de um homem que gosta de estar na rua, conversando com as pessoas, sabendo o que pensam, traduzindo situações e o mundo. Sim, o novo livro de Gay Talese é uma mescla não muito clara entre jornalismo e mentiras (ou pelo menos, meias-verdades). E agora, Gay Talese? Bom, de minha parte, nunca dispensei a leitura de um livro deste mestre da narrativa. Não será agora que farei isso.
Novo Jornalismo
Gay Talese é um dos mais notórios representantes do movimento que ficou conhecido como Novo Jornalismo e que teve seu maior impulso a partir da década de 1960, nos Estados Unidos. Era a proposta de dar maior narratividade às reportagens jornalísticas, fugindo de fórmulas de escrita e se inspirando na literatura para essas experimentações com os textos informativos. Revistas como The New Yorker e Harper Bazaar já abriam espaço para esse estilo de conteúdo desde os anos 1940, mas foi quando nomes como Truman Capote (foto), Tom Wolfe e Norman Mailer aderiram ao movimento que ele ganhou projeção internacional. Muitas dessas reportagens, depois, se transformaram em livro, como Hiroshima, de John Hersey; A Sangue Frio, de Truman Capote; Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt; Filme, de Lillian Ross, e A Luta, de Norman Mailer, além dos assinados por Gay Talese, como a coletânea Fama & Anonimato.