O escritor Albert Camus não gostava dela. Considerava Castor – apelido de Simone de Beauvoir entre o grupo de intelectuais franceses que frequentava, entre eles o próprio Camus e o companheiro Sartre – “uma pedante total, insuportável”. A filósofa Hannah Arendt também não a apreciava nem um pouco. Em uma conversa com o editor William Phillip, da Partisan Review, quando este se queixou dos “absurdos sem fim” que Beauvoir lhe dissera sobre os Estados Unidos, Arendt, naquele seu habitual tom sarcástico, lhe deu o seguinte conselho:
– O seu problema, William, é que você não percebe que ela não é muito brilhante. Em lugar de discutir, você devia flertar com ela.
É verdade que, ao sedutor Camus – um don-juan que colecionava casos amorosos e corações partidos –, a postura altiva e sexualmente desafiadora da bela e elegante Simone também não devia agradar muito. Por sua vez, Hannah Arendt – e este é um dos motivos de crítica à obra da pensadora – sempre tratou com um certo desdém o feminismo, tanto o militante quanto o teórico, embora a própria Beauvoir tenha relutado por muito tempo em se classificar como “feminista”.
Mas o fato é que Simone de Beauvoir (1908-1986) – e quem, honestamente, teria desejado tal coisa? – nunca foi mesmo uma unanimidade.
Do ativismo de esquerda que a fez, como ao companheiro Sartre, fechar os olhos por muito tempo às atrocidades do stalinismo à própria qualidade literária de seus ensaios, romances, peças teatrais e escritos autobiográficos – nem sempre recebidos com muito entusiasmo –, a trajetória intelectual e política da escritora francesa ainda hoje é motivo de controvérsias. No entanto, foi sobretudo a vida pessoal de Castor – particularmente o relacionamento aberto com Sartre e outros inúmeros affaires com homens e mulheres – que acabou por ofuscar o legado da sua obra.
Uma obra que, neste momento em que vivemos uma espécie de “renascimento” do movimento feminista, ao mesmo tempo em que há uma ameaça real de retrocesso nas conquistas e nos direitos das mulheres, mais do que nunca exige ser revisitada – em especial o clássico da autora, O Segundo Sexo.
“Hesitei por muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres”, assim Beauvoir inicia o seu tratado feminista, cuja primeira edição foi lançada em 1949. Sem dúvida, em um cenário que combinava o sentimentalismo barato da subliteratura sobre temas “femininos” – uma praga que permanece até hoje – e a atitude desdenhosa de uma certa ala da intelectualidade feminina que se julgava acima dessas questões, não devia mesmo ser muito animadora a perspectiva de dedicar-se a tal tarefa.
Porém, premida pela urgência de falar da mulher, desse Outro que o homem – compreendido desde sempre como o Sujeito, o Absoluto – opõe a si, Simone se entregou a esse trabalho com paixão, com rigor e, sim, com brilhantismo.
É claro que, em alguns aspectos, o livro de Simone de Beauvoir pode parecer um pouco datado aos olhos das leitoras deste século 21. A autora escreve tendo em mente o público formado por mulheres como ela própria – brancas, bem educadas, provenientes de famílias burguesas e, ao final dos anos 40 do século passado, ainda ensaiando o movimento de romper as barreiras da vida doméstica para ingressar no mercado de trabalho.
“Reconhecer um ser humano na mulher não é empobrecer a experiência do homem: esta nada perderia de sua diversidade, de sua riqueza, de sua intensidade, se se assumisse em sua intersubjetividade Trecho de O Segundo Sexo, vol. 1”
No entanto, na tarefa que se propõe de refletir sobre a condição feminina – e é importante frisar aqui, arendtianamente, a expressão “condição feminina” e não “essência feminina”, porque nós não somos seres imutáveis, mas sim condicionados por fatores históricos, políticos, psicológicos, sociais, econômicos, culturais, biológicos –, o clássico de Beauvoir revela todo o seu vigor e a sua atualidade ao conduzir-nos a um exercício de autocompreensão. Porque a leitura de O Segundo Sexo nos motiva, antes de tudo, a indagar-nos sobre nossa existência como mulheres singulares e também inseridas numa coletividade e sobre qual é o nosso lugar no mundo.
O que é uma mulher?, pergunta Simone de Beauvoir. Uma mulher não é só uma anatomia de fêmea, um ser prisioneiro de um corpo que por vezes lhe é penosamente opaco e misterioso, um corpo que menstrua, que muda repentinamente seus humores, que carrega o fardo da gravidez. Uma mulher também não se define por uma falta – a ausência do pênis, causa inata do que seria seu suposto complexo de inferioridade. “A menina não inveja o falo a não ser como símbolo dos privilégios concedidos aos meninos”, contrapõe Beauvoir.
“A mulher não é vítima de nenhuma misteriosa fatalidade; as singularidades que a especificam extraem sua importância da significação que elas revestem; elas podem ser superadas desde que se abram novas perspectivas Trecho de O Segundo Sexo, vol. 2”
Uma mulher é ainda dispor de um jeito singular, e múltiplo, de alcançar o prazer sexual – uma voluptuosidade que não se concentra em um ponto em particular, mas se irradia pelo corpo.
Uma mulher é e não é todas essas facetas, porém não se reduz a elas, porque uma mulher não é simplesmente uma criação da natureza – aliás, na coletividade humana, nada é natural. Como o homem, a mulher é um produto elaborado pela civilização humana.
Daí o sentido da famosa frase de Simone – infelizmente tão mal compreendida – que abre o primeiro capítulo do segundo tomo de seu tratado: “Não se nasce mulher: torna-se”. Nascemos fêmeas, mas tornamo-nos mulheres porque não somos prisioneiras de destino algum. Nossa condição feminina é, sim, fruto daquelas condicionantes já citadas – históricas, sociais, políticas, econômicas etc. Não somos, porém, determinadas fatalisticamente por elas nem por nossos hormônios – como diz Beauvoir, o fato de ter ovários não significa que devemos viver eternamente de joelhos.
Se há algo que caracteriza a condição feminina, portanto, é a sua indeterminação. Ser mulher, então, significa que podemos sempre nos reinventar. É este o desafio que Simone de Beauvoir nos propõe. Um convite à liberdade – e a assumir as responsabilidades que a experiência de ser livre acarreta.