Incomoda um pouco ver um espetáculo sobre um trompetista sem ouvir o som do trompete. Como não domina o instrumento, o roteiro contorna esse problema para o cantor, ator e ex-integrante da banda roqueira Titãs Paulo Miklos, que está em cartaz no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte (até segunda-feira, 25) com uma montagem sobre Chet Baker (1929-1988), um ícone do cool jazz.
Em sua estreia no teatro (o ator só esteve nas telas até então), Paulo Miklos estrela um recorte ficcional da dramática carreira do instrumentista, cantor (e por vezes também ator) norte-americano Chesney Henry Baker Jr. Mas a falta do sopro não compromete a montagem, já que o texto foca no drama humano do personagem e joga luz também na própria música, executada à altura, ao vivo, por um quarteto de músicos-atores que, em muitos momentos, roubam a cena do protagonista. Na trilha, só clássicos do jazz.
Em Chet Baker – Apenas Um Sopro são mesmo os parceiros de palco, mais do que Miklos, que dão vida e cor ao texto de Sérgio Roveri, com direção de José Roberto Jardim. O enredo se passa num estúdio de gravação, onde Baker é esperado para o registro de um suposto novo disco, depois de ficar anos afastado da música em função das consequências de uma briga (ele perdera os dentes nessa luta). A briga em que Chet Baker se meteu é fato, mas a sessão de gravação é ficção.
Um dos destaques na encenação é Anna Toledo, atriz que faz o papel de Alice, crooner do grupo montado pelo produtor para Baker. Completam o quarteto o pianista Piero Damiani (assina a direção musical), o baixista Jonathas Joba e o baterista Ladislau Kardos, no papel de Phil, um imberbe e vidrado fã de Baker que ganha a chance de ouro de tocar com seu ídolo. É por ele que o texto injeta humor e picardia no palco, com boa colaboração do contrabaixista Joba.
A briga ocorreu em 1966 em San Francisco (EUA), por consequência da trágica relação de Chet Baker com as drogas; o músico morreu mais de 20 anos depois ao se jogar da janela de um hotel na Holanda. A perda de todos os dentes, porém, é controversa. Há estudiosos do assunto que afirmam que Baker não perdeu todos os dentes, ele gostava de fantasiar muitos dos episódios de sua vida. E a peça de Miklos brinca com isso: a certa altura, o baixista Jonathas Joba lembra que Chet Baker era conhecido por duas coisas: “tocar e mentir”.
Fisicamente, Miklos até lembra mesmo Baker, mas o encarna pouco. O ex-titã parece melhor na telona do que no teatro, ao menos nesse primeiro teatro. Ele se esforça na fala baixa, emulando o canto sussurrado de Baker. O paletó jogado sobre a camisa branca e a bag de onde o trompete sai vagarosamente, mas não ressoa em momento nenhum, ampliam a projeção da imagem de Baker em Miklos.
O roteiro é bom, envolvente a tal ponto que, mesmo quem conhece pouco a história de Chet Baker, percebe nuances, percalços, filigranas e dramas de uma música em movimento. Fica claro também o autoflagelo de um músico que sabotou como poucos a própria carreira. Para músicos e aficionados, a peça faz pensar por trazer à tona idiossincrasias, apertos e um quase inevitável embevecimento da produção musical. Aparece nítida também a relação complicada com o produtor por trás de discos e shows de Baker, de resto uma verdade comum a qualquer gênero musical.
Paulo Miklos não está mal, mas só se redime mesmo ao final, quando entra em cena o Chet Baker cantor e não o Chet Baker instrumentista. A peça termina com ele cantando My Funny Valentine, clássico do gênero (de Lorenz Hart) e uma canção emblemática na carreira de Baker, pois foi com ela que seu canto intimista passou a ser admirado e ele deixou de ser apenas um dos protagonistas do chamado West Coast (estilo que inovou ao escantear o onipresente piano nas formações jazzísticas da época – anos 50/60) para se tornar um expoente do cool jazz, mesmo com toda a autossabotagem.
Na trilha, outros clássicos do jazz numa inacabada lista prévia do produtor de Chet na história da peça, que dramatiza um pouco mais em Old Devil Moon (Burton Lane/E.Y Harburg), canção que gera um estresse entre Alice e Baker. A cena volta a sugerir que os dramas de Chet Baker não se resumiam às drogas. Em suma, a espera por um sopro que nunca sai de um músico atormentado por alucinações e fragilidades alimenta também essa angústia na plateia, que sai no fim à espera de apenas um sopro.
A peça está em seu segundo giro (começou no CCBB de São Paulo), mas não tem data ainda para chegar a outras capitais.