Em Meu Amigo Hindu, um diretor consagrado tenta acertar os pontos com a própria carreira e consigo mesmo. Ele sofre de uma doença terminal, começa a se despedir dos amigos e decide se casar, no que provavelmente serão os últimos atos de sua vida. E, assim, com um filme de fortes cores autobiográficas, o cineasta Hector Babenco, que morreu em consequência de uma longa luta contra o câncer em 13 de julho, aos 70 anos, finalizou sua parceria com a sétima arte.
Sem dúvida, o diretor argentino naturalizado brasileiro contribuiu para divulgar o País internacionalmente e de um modo peculiar, sem se render a estereótipos e ávido por encontrar seu público. Sobretudo, Babenco ofereceu aos próprios brasileiros uma perspectiva interessante e um olhar aguçado sobre várias questões da nossa realidade ao longo de quase 40 anos, mas sem perder a poesia de vista.
Cinéfilo radicado no Brasil desde os 19 anos, ainda na ditadura o cineasta fez um dos filmes mais interessantes sobre as consequências do regime militar na vida e na moral do País com Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia (1977). Um drama policial com vários elementos do cinema de gênero, uma das paixões do cineasta, o suspense do longa-metragem se estrutura em torno do autoritarismo e da bárbarie gerados nas entranhas da ditadura, como a violência e a corrupção da polícia e de monstruosidades como os esquadrões da morte.
Porém, foi com Pixote, A Lei do Mais Fraco (1980) que o cineasta projetou sua carreira internacionalmente. Com a trama sobre crianças marginais e marginalizadas, uma aberração do cotidiano brasileiro, ele coloca em pauta mais essa tragédia nacional numa narrativa ousada, autoral e tão poética quanto visceral, na perfeita sincronia entre o tom documental e o teatral. É clássica a cena em que Fernando Martins, um garoto escalado numa favela e que vive o menor infrator do título, e a já consagrada atriz Marília Pêra no papel da prostituta acolhem-se como numa Pietá, num dos momentos mais icônicos do cinema mundial. Tragicamente, o protagonista morreu aos 19 anos, depois de tentar carreira como ator, ao fazer um assalto.
À exaltação, merecida, de Pixote, seguiu-se a primeira coprodução internacional de Babenco: O Beijo da Mulher-Aranha (1985). Adaptação do texto teatral do argentino Manuel Puig, o filme gira em torno de um preso político que divide a cela com um homossexual acusado de corromper menores. O longa reúne um elenco que mistura atores brasileiros, como Sonia Braga e José Lewgoy, a americanos como William Hurt, além de Raul Julia (americano nascido em Porto Rico). Apesar de rodada no Brasil, a trama não se fixa num país específico da América Latina e foi indicada ao Globo de Ouro. William Hurt se destacou e ganhou os prêmios de melhor ator em Cannes e no Oscar.
Com as portas abertas em Hollywood, Babenco filma Ironweed (1987) com os astros Meryl Streep e Jack Nicholson como um casal de mendigos – sua primeira produção totalmente americana. A amargura extrema da narrativa se concentra mais nos personagens, sem tanta contextualização política, o final dos anos 30 nos EUA, e na condução dos atores, rendendo mais duas indicações a Jack e Meryl ao Oscar. Um de seus melhores filmes, Ironweed nem sempre é valorizado como deveria.
Brincando nos Campos do Senhor (1991), filmado no Brasil e com elenco notadamente americano, detém-se sobre um grupo de americanos que vai viver numa vila remota em plena Amazônia. Baseado no livro de Petter Matiensen, o longa é um dos trabalhos do diretor que mais desagradou à crítica, principalmente a brasileira, que não perdoou o abuso do lugar-comum e a superficialidade dos personagens.
Sofrendo de câncer, o cineasta deixa a carreira em segundo plano por alguns anos, mas volta à cena em 1998 com o drama autobiográfico Coração Iluminado. Delicado, o filme não teve tanta repercussão na mídia e nas bilheterias, apesar de ter sido selecionado em Cannes. Babenco retorna à telona em grande estilo em 2003 com o impactante Carandiru. Uma superprodução, o longa baseado em fatos reais – os dias que antecederam à carnificina no presídio paulista – foi lançado ainda sob o impacto de Cidade de Deus, quando vários filmes ambientados entre a violência das favelas e penitenciárias dominaram o cinema brasileiro. Carandiru foi a maior bilheteria de sua carreira, com três milhões de espectadores, e é um dos principais títulos da chamada era da retomada do cinema brasileiro, a produção feita a partir de meados dos anos 90 com combustível das leis de incentivo à cultura.
Ciúme e obsessão conduzem o drama O Passado, de 2007, produção argentina com o astro mexicano Gael García Bernal como um tradutor às voltas com a ex-mulher que não aceita a separação. O filme-testamento Meu Amigo Hindu, lançado no ano passado (veja trailer abaixo), traz William Dafoe no papel de um diretor famoso que, vítima de um linfoma, viaja aos EUA para um transplante. O doador é o irmão com quem não falava há dez anos.
Dar voz e imagem aos desvalidos e marginalizados, por um lado, e dar vazão às suas próprias inquietações existenciais, de outro, foram os imperativos de uma carreira sólida que fazem de Babenco um dos principais nomes da história do cinema latino-americano. Representante de uma geração pós-cinema novo, ele se destacou pela dignidade e pela paixão tanto ao desenvolver um estilo mais ousado nas críticas sociais, como no brilhante Pixote, quanto em narrativas mais pessoais, como em Corações Iluminados, imprimindo sua marca, mas sem renegar o cinema de gênero. O cinema hollywoodiano foi um risco assumido pelo cineasta, que, apesar de nem sempre ter se saído bem na empreitada, nunca disse não ao chamado da aventura – algo que é, ao menos para cinéfilos como ele, irresistível.