Há sensações para as quais as palavras são insuficientes. Difícil contar sobre uma epifania. Momento de êxtase e transcendência tão intensos que se perde até a noção de quem se é. Trata-se de um prazer vital que provém da corrida. Isso mesmo, de esforço físico supremo, de domínio emocional e mental para superar as barreiras das limitações e atingir uma meta.
Começo assim, pelo mais emocionante, na expectativa de que você, leitor, seduzido por essa técnica básica do jornalismo, se disponha a continuar me seguindo nesta jornada sobre a experiência de estrear como maratonista, vencendo exaustivos 42,195 quilômetros. Qualquer metro a mais faz muita diferença, porque pode significar a glória de cruzar a linha de chegada ou a frustração, para a qual também faltam palavras, de “quebrar” – que no jargão dos corredores quer dizer não conseguir concluir a prova.
No caso desta primeira maratona, foram um pouco mais de 43 quilômetros, porque corremos dentro do Olympic Stadium, em Amsterdã, Holanda, antes de o chip ser registrado na largada. E muita gente, garmim (GPS de pulso de corrida) a postos, reclamou desses poucos metros a mais quando o cansaço dos trechos finais os tornou um suplício.
Depois dos 40 quilômetros, já não havia o que pensar. Não adiantava mais nenhum otimismo de Polyanna, personagem infanto-juvenil que sempre se apega ao lado bom mesmo nas piores circunstâncias. Mas predominava o amor, um amor infinito pela beleza da própria obstinação, pelas exigências cumpridas para chegar até ali, pelas pessoas queridas que nos motivam a prosseguir, nas pistas e na vida. Estava nesse afeto sem medida a condição para movimentar as pernas, numa sequência rítmica regular, mesmo lenta, carregando peso e sonhos rumo à vitória.
Despida de razão e pensamentos, restou emoção pura jorrando incontrolável, livre de qualquer pudor. Lágrimas vieram fartas, num choro de entrega e gratidão. A multidão que cercava as imediações do estádio e gritava, aplaudia, em incentivo fundamental, se diluiu na visão embaçada, focada só no objetivo determinado. Uma solidão suprema e deliciosa, o ar percebido na luta para manter equilíbrio na respiração, as dores nos pés, pernas, glúteos, a vontade firme a prevalecer. Então, a entrada triunfal no estádio lotado, música, som, vibrações aos céus, a linha final se aproximando para ser ultrapassada. Delírio. Fim.
Fim mesmo, quase literal, porque à ausência de força e aos músculos retesados, doloridos, veio se somar o golpe quase fatal das baixas temperaturas e da fina chuva. Para quem vinha treinando em Goiânia no período da seca, ou seja, sob calor infernal e ausência de umidade, um verdadeiro deserto, o clima holandês foi uma dádiva durante todo o percurso, mas teria nos causado hipotermia caso anjos da guarda não providenciassem uma operação de salvamento.
Antes porém, do relato sobre amparo e bondade, vamos apreciar com um pouco mais de detalhes essa inesquecível corrida.
Passo a passo
Pode ser que exista quem decida correr uma maratona na véspera, mas desconheço esses destemidos atletas. Todos os que sei terem conseguido o feito de correr mais de 42 quilômetros se dedicaram a isso durante meses, anos até. Então, uma maratona começa de fato naquela primeira vez que você considerou pouco caminhar e se jogou, velocidade mais acelerada, para arriscar passadas rápidas, que fazem o coração bater depressa, exigem mais e mais ar nos pulmões, testam a força dos músculos, das pernas.
Também desconheço quem já de início conseguiu correr 10, 5 quilômetros que sejam, sem intervalos de caminhada durante o percurso. Desconfio que quenianos e etíopes sejam exceção, mas deles não posso falar, além da admiração estonteante ao vê-los em disparada nas provas internacionais de que tive a chance de participar. Em Amsterdã, lá estavam eles, divinos, semideuses, na tropa de elite que saiu bem antes dos comuns mortais do ginásio olímpico. Magistral, sublime.
Como diziam o slogan da prova e vários cartazes empunhados pelas pessoas nas ruas, We believe in superheroes! (Nós acreditamos em super-heróis!). Naquele momento, éramos todos assim, jovens, maduros, velhos, mulheres, homens, gente de diferentes nações, uns seminus no frio, a esnobar sua adaptação às baixas temperaturas, outros mais agasalhados e mesmo assim mais frágeis aos ventos do Norte. Superheroes! (Pausa para reflexão: meu professor de pilates, de humor sempre a postos, me advertiu que, desse jeito, acabaria tendo de me pedir autógrafo! Menos, Karla, menos…).
Certo, você simplesmente chegou lá, entre 44.028 atletas registrados. Mas fez sua parte, ganhou com honra sua medalha cobiçada. Pode olhar para ela e ler na fita alaranjada: 40th edition. No metal barato, de incalculável valor estimativo, a inscrição acima da figura humana em pose de corrida à frente de prédios do Rijksmuseum (famoso complexo de museus): TCS Marathon. E, logo abaixo: TCS Amsterdam Marathon 2015 – 18 oktober.
Antes de pendurar no pescoço esse pequeno troféu, foi preciso lidar com treinos, adrenalina e ansiedade. Ansiedade elevada à máxima potência no dia anterior à largada, quando se é contaminado pelo medo de que algo impeça o cumprimento da meta. E se não dormir bem? Se perder a hora? Se não conseguir chegar a tempo no local da largada? Ao se aprontar para o grande momento, a excitação é tanta que talvez, mesmo sem ter ingerido substância estimulante, um exame antidoping acusasse química suspeita. “Parece cocaína, mas é só empolgação”, parafraseando Renato Russo (“parece cocaína, mas é só tristeza…”, lembra?) e deixando a tristeza de lado. Porque tristeza, nessa hora, não tem vez. É só alegria.
“Antes de pendurar no pescoço esse pequeno troféu, foi preciso lidar com treinos, adrenalina e ansiedade”
Saímos do hotel – eu estava com a amiga Vanessa Sebba, em sua quarta maratona, incentivadora maior dessa minha aventura, meu presente de 50 anos de idade – e aguardamos no frio da calçada a chegada do táxi, que não vinha nunca. Seria esse o vergonhoso e prosaico desfecho do sonho tão minuciosamente planejado? Ah, não! Não mesmo. O táxi chegou e, para alívio geral, em menos de 20 minutos já estávamos misturadas à legião que se dirigia para o interior do estádio a fim de ocupar seus lugares predeterminados para a largada.
A dupla de goianas ficou na última fileira a largar, a dos que correriam em tempo superior a 4 horas e 30 minutos. Por isso, pudemos assistir do melhor ponto a todas as largadas anteriores, a começar pela elite. No burburinho típico dos minutos que antecedem a saída para correr, gente posando para fotos (e nós não levamos celular!), fazendo selfies, se filmando, se abraçando e… fazendo xixi. Uma mulher, bem atrás de nós, se aliviou ali mesmo, na frente de todos. Como eu disse, é muita emoção.
Influências
Sobre meu presente de 50 anos ter sido correr minha primeira maratona, uma breve digressão. Fui também influenciada pelo livro Correr, do médico Drauzio Varella, que li meses antes da prova. Logo no primeiro capítulo, ele conta que vislumbrou que quem consegue correr 42 quilômetros deve ser capaz de enfrentar o futuro com mais otimismo e sabedoria pouco depois de encontrar casualmente um colega da turma do antigo ginásio, “com quarenta quilos a mais, sem cabelo”, aos 52 anos, torturando-o com um monólogo sobre o passado. Quis saber a idade de Drauzio e, ao ouvir 49, assumiu ar solene: “Ano que vem, cinquenta, idade em que tem início a decadência do homem”. É, ninguém merece. Muito menos eu.
Largada anunciada, lá fomos nós, no impulso dos aplausos, música e gritos de incentivo no interior e na saída do ginásio. Logo nos primeiros quilômetros, a beleza do outono europeu estampada na folhagem amarela, vermelha, laranja e ainda verde de árvores frondosas do belíssimo Voldenpark. Prenúncio de outras maravilhas e de que tudo daria certo, apesar de Vanessa ainda sentir uma lesão na panturrilha que a atormentou por mais de um mês antes da prova, aflição também emocional com reflexos em treinos interrompidos e receio de ter de cancelar seu projeto ou de interromper a prova.
E eu sem ter certeza de que terminaria o trajeto. Até então, o máximo que tinha corrido foram 28 quilômetros. Quando quis arriscar um “longão”, treino de mais de 30 quilômetros, a quase 15 dias da maratona, fiquei exausta no quilômetro 24, sob sol forte, e pior, tropecei numa raiz na grama onde tentava amenizar o calor e a dor nos pés, caí estatelada e machuquei o joelho, que insistia em se manifestar com fisgadas ameaçadoras nos treinos posteriores. Temia ainda uma forte dor no peito do pé que por pouco não me tirou de duas meias maratonas (21 km) anteriores, como se um punhal estivesse sendo cravado na carne e nos ossos.
Decidimos reduzir o ritmo nos trechos iniciais, quando havia força e fôlego sem restrições, para poupá-los, visando terminar a prova. A estratégia se revelou acertada, porque as dores vieram, como temíamos, e minha exaustão nos dois quilômetros finais confirmou que eu não poderia ter me concedido o luxo de buscar ser mais rápida (em provas, costumo fazer 10 km/h). Na maratona, a média caiu para 8,5 km por hora, resultado final de 4 horas e 55 minutos. Embora Vanessa seja mais jovem e melhor preparada, seguimos juntas por quase 40 quilômetros, quando então minha amiga, sempre bonita e elegante, mesmo nessas circunstâncias extremas, acelerou, enquanto eu tentava juntar o que sobrou de mim para ir até o fim. A situação crítica acabou sendo uma dádiva, porque apreciamos juntas cenários magníficos.
Jamais esqueceremos a área rural onde corremos ao menos 15 quilômetros, calculo. Casas de telhado triangular, para escoar a neve, com nomes de famílias tradicionais inscritos na fachada ou nos portões de entrada. Orquídeas e jardins de palácio a revelar o cuidado com o paisagismo. Vacas holandesas pastando ao longe. Moinhos lendários para reforçar as referências literárias, os livros de contos de fadas da infância – um tênis gigante foi colocado junto a um desses moinhos, em idêntica proporção. Essas propriedades rurais se estendem em volta de um grande lago, onde dois atletas-artistas faziam acrobacias nas alturas, equilibrando-se em pequenas pranchas sobre jatos de água. Homens bonitos e fortes remavam, bem mais ligeiros na água que nós, ao lado, no chão duro de asfalto.
A barreira dos 35 km
Para atenuar o cansaço, pausas rápidas para um “energy drink” em pequena dose, sabor limão (do qual enjoei porque não dispensei nenhum no intuito de adquirir mais resistência), água, banana entregue já descascada em mãos de luvas, mas nem por isso sugerindo estar assépticas. Nojo? Ora, banana pra dentro é garantia de vigor, e isso é que interessa. Pela primeira vez numa prova parei para fazer xixi. Acredito que devido ao frio, porque menos suor representa mais líquido retido. Lá se foram minutos preciosos no ranking geral, porque éramos duas com a mesma premente necessidade e o banheiro químico disponível era um só. No mínimo, oito minutos, quatro de cada, que diminuíram a competência de nossa performance, mas se reverteram em conforto essencial. Tentei me convencer e a Vanessa: importante mesmo é chegar lá.
Mantive essa disciplina mental de autoconvencimento, mesmo quando uma voz dentro da cabeça desmentia a outra, positiva. Quando nos aproximávamos dos 35 quilômetros, marca decisiva sobre quem vai ou não adiante segundo relatos de amigos maratonistas, eu me lembrei desses avisos e procurei abafar em mim tal sinistro prognóstico. Quem tem medo dos 35 km? Eu!, respondia uma voz bem sincera, logo silenciada por outra nem tão verdadeira, mas muito mais determinada a prevalecer. E foi assim que me surpreendi falando para animar minha amiga que se ressentia de descontar no lado esquerdo tudo o que quis poupar da panturrilha direita lesionada:
– São só oito quilômetros, três voltinhas no Areião (o parque onde ela treina, correndo 12, 13 voltas a cada uma das três vezes por semana, às quais comparece com fervor religioso), não é nada para você.
E ela, consciente do absurdo:
– Oito quilômetros não são tão pouca coisa não!
“Havia minha vontade de abraçar o mundo, de beijar cada um, de sorrir abertamente agradecendo cada gesto”
Não eram, de fato. Mas havia as crianças, lindas crianças de olhos claros e faces rosadas, a nos esperar com as mãos estendidas para um toque de solidariedade. Havia famílias reunidas com água sobre a mesa diante de casa, com as crianças a postos para distribuir o líquido vital. Havia os gritos, “go, go!” (vá, vá!). Havia os que gritavam nosso nome, estampado na inscrição afixada ao peito: “Go, Karla!”. “Go, Vanessa!” Havia minha vontade de abraçar o mundo, de beijar cada um, de sorrir abertamente agradecendo cada gesto, de acenar como irmã universal de povos tão distantes e distintos. Havia os prédios modernos, imponentes, as construções neoclássicas, os canais lendários, os bairros residenciais com aleias multicores, os viadutos tomados por pessoas a aplaudir e apoiar. Havia o sentimento de um dever a cumprir com dignidade.
Frio, dor e exaustão
Missão desempenhada, abraço de acolhida e alegria, uma tentativa não muito convincente de alongar e o que ainda havia de lucidez a recomendar que procurássemos o quanto antes abrigo. Eu ainda estava mais aquecida, graças a um casaquinho impermeável adquirido na véspera que evitou que me molhasse, porém, meu estado era lastimável. Já não conseguia concatenar as ideias e meus pés se moviam à força da necessidade de sobreviver. Vanessa, mesmo melhor na aparência, sofria com a blusa molhada pela chuva. Para complicar, caminhamos em direção contrária à da saída, em meio a uma multidão determinada, que contrastava com nossa jornada claudicante.
Pedimos, em início de desespero, para entrar em uma sala com aquecedor, mas não permitiram. Uma moça nos apontou para a direção oposta, Vanessa foi em frente, eu acompanhava um pouco atrás, temendo cair a qualquer momento. O que poderia ser solução, comentei, porque então partiríamos de ambulância. Não chegou a tanto.
Um casal simpático e solícito nos disse para acompanhá-lo, também seguiam para pegar o trem. Fomos com eles, mas então percebemos que só tínhamos dinheiro e não os bilhetes, sem os quais nada de acesso às catracas. Barradas ali, olhamos para as amplas avenidas, onde raríssimos táxis já tinham destinatários certos, previamente definidos. E nós? Tremíamos de frio, o cansaço se tornava insuportável, uma combinação assustadora mesmo para maratonistas felizes até então.
Quando parecia não haver saída, olhei adiante e vi um estacionamento cheio de carros. Teríamos de caminhar uns 200 metros, uma infinidade para quem já não conseguia se mover.
– São muitos carros, um deles há de nos levar – pronunciei, aferrada a uma inquebrantável fé que se fortalece quando tudo conspira contra seu vigor. Sem explicação lógica –- porque não é assim mesmo? “Eis o mistério da fé!”
Perto do estacionamento, avistamos uma família. Mãe, duas filhas, um filho. Uma das garotas sentada sobre o meio-fio. Casacos grossos, generosos, naquela família de uma cidade ao Norte de Amsterdã, portanto, acostumada ao frio. Olharam para nossos trajes exíguos com compaixão, acentuada quando souberam como chegamos àquela situação, no breve relato no nosso inglês possível (sofrível), mas suficiente para a comunicação salvadora. A garota sentada contou que também tinha corrido a maratona. Em holandês, falou com a mãe, depois, em inglês, nos disse que o pai tinha ido buscar o carro e que nele sobravam dois lugares e nos levariam assim até a estação central, onde teríamos condução para chegar ao hotel. Divino, maravilhoso.
O pai estacionou, embarcamos todos, ele viu como tiritávamos e ligou o aquecedor no máximo. Sentada, confortável, quentinha e em segurança, entreguei os pontos e me deixei levar, agradecida, enquanto verificávamos no smartphone da corredora holandesa nosso tempo na maratona e trocávamos congratulações. Vanessa explicava que tinha feito tempo melhor em provas anteriores, contava da lesão na panturrilha, eu falava de como me sentia com meu feito de estreia… De novo, a família conversa em holandês e aí a menina nos diz em inglês que nos levariam até o hotel, cujo endereço informamos com enorme satisfação.
Tudo muito bom, tudo muito bem, até que o percurso vai se revelando longo e diferente, como se estivéssemos indo para fora da cidade… estaríamos indo para Roterdã? Vanessa perguntou, aflita, em português. Respondi que estava tudo certo, fosse como fosse. Eram pessoas boas e de alguma forma retornaríamos, vivas, ao hotel. A garota holandesa pressentiu e afirmou em inglês: Everything is ok! (Tudo vai ficar bem). Ficou, de fato, porque não demorou muito estávamos mesmo diante do hotel, profundamente gratas, e eu ainda gastei uma expressão nova recentemente aprendida na aula de inglês.
– After all, you’ve saved our lives!
Eles riram muito e se despediram desejando boa sorte.
A sorte foi lançada e nos abençoou com muitas graças. Tantas que era para ser só mesmo uma maratona, para experimentar, ter no currículo, depois de tantos anos de treinos e provas, blá-blá-blá… eu disse uma? Bem, já estava sonhando com a próxima, embora não tenha certeza se novas chances virão. Mas assim é correr, sempre tem um novo desafio a nos estimular e tornar mais vivos, alegres, solidários. Quem corre, sabe.
E por que alguns amam correr e outros não? Recorro ao mestre Haruki Murakami (Do que Eu Falo quando Eu Falo de Corrida): “Para dizer a verdade, eu nem acho que exista grande correlação entre o hábito de correr todo dia e essa coisa de ter ou não força de vontade. Creio que fui capaz de correr durante mais de vinte anos por um motivo simples: isso me cai bem. Ou pelo menos porque não acho assim tão doloroso. Os seres humanos naturalmente continuam a fazer as coisas de que gostam, e param de fazer as que não gostam”. Concordo.
Como gosto, e gosto muito, espero seguir praticando, correndo, descobrindo lugares e emoções, vencendo meus próprios limites nas provas e com isso treinando minha resistência e flexibilidade também para a vida.
Parabéns voce é ótima em tudo que faz te admiro desde de sempre bls Eba
Parabéns pelo empenho e dedicação! Correr é muito bom. Só quem corre conhece essa emoção! Abraços Marly
Sempre em frente e avante! Texto fluido, gostoso de ler. Aventura saudável e, pelo que você demostrou, gratificante!