Na primeira metade do século 19 na França, uma nova palavra surgia como a chave para explicar um sentimento muito disseminado de angústia e perplexidade diante de um mundo em rápida transformação. A tal palavrinha era “individualismo”, assim definida pelo Dicionário da Academia Francesa, na sua edição de 1835: “a subordinação do interesse geral ao interesse do indivíduo”.
Expressão da moda no meio político e intelectual, o termo “individualismo” era sacado do bolso toda vez que se tornava necessário encontrar um vilão para os males da época.
À esquerda, luminares como Saint-Simon, Fourier e um Auguste Comte da primeira fase punham na conta do individualismo a culpa pelo desaparecimento dos laços comunitários e pela emergência de uma sociedade de indivíduos voltados para o próprio umbigo. À direita, gente saudosa da realeza absoluta como os ultrarreacionários Bonald e De Maistre enxergavam no individualismo o responsável pelo fim das antigas tradições aristocráticas e pelo fortalecimento de uma cultura burguesa excessivamente preocupada com os ganhos materiais.
Mas o fenômeno do individualismo contava também com defensores inflamados, sobretudo entre os liberais. Madame de Stäel – hoje um nome pouco lembrado, mas então uma pensadora liberal de enorme influência – resumiu esse entusiasmo ao dizer que a França experimentava o “triunfo do individualismo”. Num célebre discurso proferido no Ateneu de Paris em 1819, Benjamin Constant declarou que a “verdadeira liberdade moderna” era a “liberdade individual”, entendida por ele como a independência dos indivíduos em suas vidas privadas.
A querela em torno do individualismo também atiçava os ânimos no campo da literatura. Revolucionário na ficção, mas um conservador no terreno da política, Balzac temia que a autonomia individual tão festejada pelos liberais ocorresse em detrimento da sacralidade da família.
Do outro lado da fronteira, Stendhal chegou a declarar que “a única coisa de valor no mundo é o eu”. Não à toa os heróis de seus livros – a exemplo do Julien Sorel de O Vermelho e o Negro – estão sempre em confronto, como cavaleiros solitários, com a sociedade e o Estado.
“Stendhal chegou a declarar que a única coisa de valor no mundo é o eu”
Em meio a esse clamor contra e a favor do individualismo, Alexis de Tocqueville – o primeiro teórico da democracia representativa moderna – se destacava por apresentar uma compreensão original do fenômeno. Fiel às suas convicções liberais, o autor exaltava a liberdade e a autonomia individuais. Contudo, e sem se render a qualquer nostalgia de uma época aristocrática, este pensador de origem nobre teve o cuidado de apontar os riscos inerentes a uma conduta individualista que descuide das responsabilidades para com o bem comum.
No segundo volume de seu clássico A democracia na América, pensando particularmente na sua França natal, Tocqueville admite que o individualismo era um traço característico daquela nova sociedade que surgira após a Revolução de 1789. Aliás, a própria noção de indivíduo era desconhecida das gerações anteriores, cujos membros não percebiam a si mesmos isoladamente, mas sempre fazendo parte de uma teia de hierarquias e relações sociais praticamente imutáveis. No mundo moderno, caracterizado pela crescente igualdade de condições, o indivíduo, não mais sujeito a esses vínculos, passa a se sentir inteiramente livre para cuidar dos seus próprios interesses.
Mas há uma diferença, em Tocqueville, do cultivo dos valores relacionados à individualidade, os quais prezam a liberdade e a autonomia dos indivíduos, e o individualismo como fenômeno social, político e cultural. Este fenômeno, segundo Tocqueville, é uma espécie de “doença” da modernidade – um vício “político”, que ele, a princípio, distingue do egoísmo, um vício “moral”.
Na concepção tocquevilliana, uma atitude individualista não é necessariamente egoísta, num sentido estrito: alguém que se encaixe na classificação de “individualista” pode até se revelar especialmente dedicado à família e aos amigos. Porém, ao privilegiar somente os seus interesses privados e o seu círculo mais íntimo de convívio, isolando-se da coletividade e renunciando à sua atuação no mundo público, ele falha como cidadão. O egoísmo é um defeito de caráter do indivíduo; o individualismo, um defeito de caráter do cidadão.
“O egoísmo é um defeito de caráter do indivíduo; o individualismo, um defeito de caráter do cidadão”
Na visão de Tocqueville, o individualismo é uma doença que corrói o espírito público. Mas se, inicialmente, a postura individualista atinge só a fonte das virtudes “cívicas”, referentes às práticas de boa conduta que devem ser exigidas de todos os cidadãos, com o decorrer do tempo, ela acaba por se confundir com o egoísmo, que destrói a fonte de todas as virtudes – políticas e morais.
Afinado com uma tradição republicana que remonta a Rousseau e a uma concepção greco-romana da política, para Tocqueville, o desenvolvimento integral do ser humano não separa o indivíduo do cidadão, o espaço privado do público.
Dentro dessa concepção, o esfacelamento da cidadania não representa uma tragédia apenas para o ordenamento público – ele atinge em cheio as próprias relações humanas.
Perfil
Alexis de Tocqueville nasceu em Paris em 1805. Formado em direito, ele ingressou na magistratura em 1827. No início da década de 1830, ao lado do amigo Gustave de Beaumont, embarcou para uma longa viagem pelos Estados Unidos, a fim de conhecer o sistema penitenciário do país. Seu objetivo maior, no entanto, era investigar como funcionavam as instituições democráticas norte-americanas, esforço que resultou no seu clássico A democracia na América, publicado em dois volumes: o primeiro em 1835 e o segundo, em 1840. Ele é autor ainda de O Antigo Regime e a Revolução e de Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris. Além do trabalho teórico, o autor abraçou a carreira política: foi parlamentar por 12 anos e ministro das Relações Exteriores, por um curto período, no governo de Luís Napoleão. Tocqueville morreu em 1859, vítima de tuberculose, em Cannes.