No Natal do ano anterior, eu havia ganhado a moto dos Chips. Ela andava sozinha, fazia barulho de sirene e ainda batia na parede e voltava. A tecnologia de “bater e voltar”, no começo dos anos 80, era algo que devia mesmo chamar a atenção da meninada. Era o máximo aquilo, um diferencial entre os brinquedos mais modernos. A moto, depois do helicóptero do boneco Falcon dois anos antes, havia sido o melhor presente de toda a minha vida. Juntar os dois em uma brincadeira só, então, era um dos grandes momentos do meu dia naqueles anos – 1983, 1984. Havia explosões, e a população de playmobils corria grande perigo. Mas tudo terminava bem.
Havia ainda os desenhos animados e as séries na TV. Pois é, assistir assiduamente a séries não é um fenômeno atual. Mas, enfim, naquele agosto de 1984, havia outra atração na TV, até então inédita para mim. Eram as Olimpíadas de Los Angeles. Eu estava fissurado. Lembro-me até hoje da música-tema, composta pelo brasileiro Sérgio Mendes. Se quiser, posso até cantarolá-la para você agora.
“O clima era tenso mesmo. Os soviéticos boicotaram as Olimpíadas nos Estados Unidos. Sendo assim, os norte-americanos ganhavam tudo. Eles pareciam imbatíveis.”
Ainda era época da Guerra Fria. Todos viviam sob a ameaça constante de uma explosão nuclear. Pensando nisso hoje, chega a soar engraçado. Mas, na minha cabeça de menino, a qualquer momento alguém apertaria um botão e bum! O mundo explodiria igual a minha brincadeira da cidade dos playmobils.
O clima era tenso mesmo. Os soviéticos boicotaram as Olimpíadas nos Estados Unidos. Sendo assim, os norte-americanos ganhavam tudo. Eles pareciam imbatíveis. Meu pai, comunista de carteirinha, dizia que, se os soviéticos estivessem lá, a história seria outra. Mas o fato é que os donos da casa não deixaram nem mesmo uma migalhinha para a nossa seleção de vôlei masculino – até então era o que mais me empolgava no quesito patriotismo naqueles jogos. William, Bernard, Montanaro, Xandó, Renan e Amauri ficaram conhecidos como a geração de prata. Nem o saque do Bernard “jornada nas estrelas” era capaz de dar um golpe derradeiro naqueles gringos. Ainda havia outro atleta que chegou a empolgar a meninada, o Ricardo Prado, da natação. Mas ele ficou só na quase aliteração mesmo. Prado foi prata também…
Enfim, naquela época, um brasileiro ganhar uma medalha de ouro seria um baita feito. No dia 6 de agosto de 1984, eu finalizei minha brincadeira com a moto dos Chips e o helicóptero do Falcon. Peguei algo pra comer na cozinha, um pacote de bolachas recheadas. Apertei o botão de ligar da TV e sintonizei o canal 8. Era época de Olimpíada e alguma coisa legal passava sempre à tarde. O narrador anunciou a final do atletismo. Oba!
Eram os 800 metros. Eu já tinha ouvido falar em um corredor daqueles ali, ele se chamava Sebastian Coe. O nome estava na minha memória porque era quase idêntico ao do meu pai, Sebastião. O Tiãozinho inglês deveria vencer, eu pensava. Tinha um brasileiro lá, falaram bem dele. Mas era brasileiro… A gente não ganhava nada. Nem no futebol.
No meio da prova, eu já estava de olho no brasileiro porque o narrador chamava a atenção para isso, dizendo que ele estava bem. Eu torcia, mas no fundo não esperava, de verdade, que ele vencesse. Na última curva, o brasileiro começou a disparar. Deixou todo mundo para trás. Lembro que fiquei ajoelhado com os olhos grudados na TV, assistindo. Ele iria vencer? Aquilo estava valendo? Ele deixou todo mundo para trás mesmo! Ele venceu! Como assim!? Era verdade: Joaquim Cruz alcançou o 1º lugar dos 800 metros com expressiva superioridade frente aos adversários e com direito a novo recorde olímpico.
“No meio da prova, eu já estava de olho no brasileiro porque o narrador chamava a atenção para isso, dizendo que ele estava bem. Eu torcia, mas no fundo não esperava, de verdade, que ele vencesse. Na última curva, o brasileiro começou a disparar. Deixou todo mundo para trás. Lembro que fiquei ajoelhado com os olhos grudados na TV, assistindo. Ele iria vencer? Aquilo estava valendo?”
Depois daquela prova eu pedi a minha mãe para entrar em uma escola de atletismo. Não, mentira, eu não pedi. Este seria um final pomposo para mais uma história de uma criança que se empolga com uma vitória no esporte. Mas uma vitória como a de Joaquim Cruz é mais do que esse clichê. Nunca fui atleta de nada, mas, depois de Los Angeles, sempre acompanhei os jogos olímpicos porque eles têm a capacidade de tocar na memória afetiva das pessoas.
Quando começa uma nova Olimpíada, tenho sempre a mesma sensação. A vontade de parar em frente à TV e tentar acompanhar tudo. Talvez eu tivesse esquecido todos os detalhes da Olimpíada de 1984 se o resultado daquela vitória não tivesse sido tão marcante na minha memória afetiva. Os Chips, o Falcon, as brincadeiras, os desenhos animados, os programas da TV, as histórias dos primeiros anos de escola… Aquela prova foi marcante como as coisas boas daqueles dias.