Com a letra redonda e caprichada, a jovem mamãe escreve no Livro do Bebê – uma espécie de diário para acompanhamento dos filhos, muito em voga naquele início da década de 1950:
“Muito levado, demonstra predileção acentuada por música, mas somente da eletrola, do rádio não.”
O olhar atento da pedagoga Maria Antonieta Alessandri parece já ter captado, nesse momento, qual seria o destino daquele menino travesso de nove meses, que só sossegava quando o pai, o médico cardiologista Clóvis Figueiredo, colocava as valsas de Strauss ou outro disco da coleção de clássicos da Reader’s Digest na vitrola. Ainda ensaiando os primeiros passos, o futuro pianista Clóvis Alessandri já revelava o seu caráter e a sua sina: um espírito inquieto e um grande talento para a música erudita que o levaria para muito longe da residência da família, uma ampla casa na Rua 7, no Centro de Goiânia.
Hoje aos 66 anos de idade e há mais de 40 morando em Colônia, na Alemanha, Clóvis conserva o mesmo desassossego da infância. Desde maio, está imerso de corpo e alma em um novo desafio: ensaiar diariamente os movimentos complexos do Concerto para Piano e Orquestra de Cordas do compositor russo Alfred Schnittke (1934-1988), obra que é considerada um tour de force mesmo para instrumentistas experientes.
O concerto de Schnittke, tendo Clóvis como solista, fez parte do programa que a Orquestra Jovem de Goiás apresentou ao público na quarta-feira, dia 10 de agosto, no Teatro Basileu França, sob a regência do maestro Gottfried Engels. O tenor Dêmades Gomes e a soprano Sabah Moraes também subiram ao palco junto da orquestra, para interpretar árias de Wagner, Puccini, Strauss e Verdi.
No amplo apartamento próximo ao Bosque dos Buritis, seu endereço nas temporadas anuais que passa em Goiânia, Clóvis fala com entusiasmo da experiência de, pela primeira vez, tocar com uma orquestra em sua cidade natal. Derrama elogios para os jovens músicos que o acompanharam na difícil tarefa de executar o concerto de Schnittke, o qual dialoga com ritmos populares como o blues e o jazz. “É uma obra que exige muito do solista, mas lhe dá imensa liberdade”, define Clóvis.
O convite para a apresentação partiu do próprio maestro Gottfried Engels, um alemão amigo há anos de Clóvis, também residente em Colônia e casado com a jornalista brasileira Regina Soares. Engels tem uma longa trajetória de trabalho com orquestras de jovens músicos na Alemanha, na Venezuela e em Hong Kong e agora junto à Orquestra Jovem de Goiás.
Mas por que Clóvis, músico goiano com carreira consolidada no exterior, nunca se apresentou antes como solista em uma das orquestras do Estado? – questiona a reportagem de ERMIRA. “Porque nunca fui convidado”, responde o pianista. Mas o público goiano já teve a chance, algumas poucas vezes, é verdade, de conferir a performance do artista no palco.
Uma dessas ocasiões foi no final de julho, quando ele tocou na cidade de Goiás, ao lado de Eliane Rahal, pianista goiana radicada na Alemanha, e da dinamarquesa Britta Bugge Madsen, em um recital em homenagem a uma grande amiga do trio: Valéria Zanini, outro talento do piano em Goiás, que morreu no início do ano, na Dinamarca, onde morava desde a década de 1970.
No ano passado, por uma dessas tristes ironias do destino, Clóvis, Valéria e Eliane tinham se apresentado em conjunto na antiga capital, também no final de julho, para homenagear outro grande amigo dos três: o músico e professor de teatro Reginaldo Saddi, morto em 2014. Há dois anos, Clóvis deixou o público extasiado ao encerrar, ao som de Piazzolla, um belíssimo recital no Centro Cultural UFG.
Talento do mundo
Mas é para as plateias do exterior, sobretudo, que o talento de Clóvis Alessandri brilhou e continua brilhando. Talento que, apesar da vocação musical que já revelara ainda na primeira infância, começou a se exercitar um pouco tardiamente: foi só aos 9 anos (a idade recomendada para iniciar é aos 5, 6 anos) que ele finalmente passou a estudar piano, primeiramente com dona Diana, mãe da famosa pianista goiana Belkiss Spenzieri.
O curto tempo perdido foi logo recuperado: das lições iniciais com dona Diana, Clóvis foi admitido como aluno de Heloísa Barra, que soube administrar os dons do garoto não muito disciplinado dando-lhe inteira liberdade. “Ela não me podava”, agradece Clóvis. Aos 14 anos, o adolescente de olhos verdes e talento invejável ingressou no Conservatório de Música, onde conheceu as amigas de toda a vida Eliane Rahal e Valéria Zanini e teve aulas com dona Belkiss.
A vida musical em Goiânia, naquelas décadas de 1960 e 1970, era bastante movimentada, apesar do cotidiano pacato da cidade. Já na Escola de Música da UFG, onde também cursava Direito, Clóvis teve oportunidade de assistir às aulas do grande compositor e maestro Camargo Guarnieri, na época professor visitante em Goiânia. Mas o jovem músico goianiense sentia que podia ir além.
Meses antes, uma temporada nos Estados Unidos – onde fora estudar inglês em um programa de high school – despertou seus sentidos para a música contemporânea de Shostakóvich, Alban Berg e George Crumb. Clóvis recorda-se do êxtase ao ouvir pela primeira vez Echoes of Time and The River, a premiada suíte orquestral de Crumb, numa sala de concerto em Chicago. Foi na cidade norte-americana que também viveu uma experiência memorável: assistir a um já idoso, mas sempre inspirado, Arthur Rubinstein dedilhar ao piano as sonatas de Chopin.
Em 1971, Clóvis resolveu concluir os cursos de Piano e Direito no Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa, foi aluno de Ordália Jacobina, célebre professora da Escola Nacional de Música. Também estudou com outra lenda do piano nacional: Arnaldo Estrella, responsável pela formação de várias gerações de importantes instrumentistas brasileiros.
Porém, foram outros dois grandes talentos do teclado que o influenciaram especialmente durante os anos em que morou no Rio de Janeiro. O músico paraibano Antônio Guedes Barbosa – “que abriu meus olhos para muita coisa”, recorda-se – e a célebre Magda Tagliaferro, a dama do piano que Clóvis conheceu ainda em Goiânia e de quem teve o privilégio de ser aluno em terras cariocas e depois em Paris.
Com essa sólida formação iniciada em Goiânia e concluída no Rio de Janeiro, ostentando no currículo premiações em vários concursos de piano, entre eles dois nos Estados Unidos, e já com uma agenda movimentada de recitais no Rio de Janeiro e em São Paulo, o sempre inquieto Clóvis ainda não estava satisfeito. Do amigo Paulo Bosisio, talentoso violinista carioca que à época morava em Colônia e estava de férias no Brasil, recebeu a sugestão de ir para a cidade alemã onde a música fervilhava.
Com a “bolsa-família” bancada pelo pai, Clóvis não pensou duas vezes. Dominando o alemão que aprendera em Goiânia com a professora Grundun, cunhada do arquiteto e artista plástico Gustav Ritter que causava sensação na cidade pilotando uma lambreta, o jovem pianista foi arriscar a vida em Colônia.
A bela cidade alemã fundada ainda no Império Romano era, como ainda é hoje, um importante centro da música erudita mundial. Mas naqueles anos de 1970 o cenário ainda era mais efervescente. Stockhausen provocava uma revolução com suas composições de música eletrônica. Luigi Nono inovava com suas experimentações orquestrais.
Nesse ambiente rico e instigante, Clóvis foi aceito na Escola Superior de Música de Colônia para aperfeiçoar seus estudos com o professor Aloys Kontarsky. Também aproveitava as oportunidades que surgia para ir a Paris participar das concorridíssimas master classes com Magda Tagliaferro, na famosa Salle Cortot. Nelson Freire, amigo de Clóvis desde a década de 1960, e a argentina Martha Argerich eram outras estrelas do piano com quem o músico goiano mantinha contato na capital francesa.
Logo na sua chegada em Colônia, Clóvis ficou amigo de mais um instrumentista que teria enorme influência na sua trajetória musical: o pianista mexicano Fernando Garcia Torres. Foi Fernandito, como Clóvis carinhosamente o chama, quem lhe abriu as portas do México, uma segunda casa para o músico goiano, que religiosamente visita o país todos os anos.
A convite inicialmente de Fernandito, que foi diretor da Escola de Música do México, Clóvis se apresenta regularmente em várias cidades mexicanas desde a década de 1980. Nos anos 1990, sua atuação no país chegou ao auge e ele tocou no famoso Palácio de Belas Artes, na Cidade do México. “Eu conheço mais cidades do interior do México que muitos mexicanos”, brinca o pianista.
Neste tempo todo em que mora na Europa, Clóvis divide seu tempo como professor e concertista. Deu aulas por anos, até se aposentar há pouco tempo, na Escola Superior de Música de Colônia e hoje tem cerca de 15 alunos particulares. Os convites para tocar, em palcos de várias cidades europeias, são frequentes – como solista e camerista, ele se apresentou por diversas vezes na Alemanha, na França e na Itália.
Em Colônia, realizou recentemente uma série de recitais ao lado da romena Mirabela Dina, com quem tocou as sinfonias de Brahms para piano a quatro mãos. Gostou tanto da experiência que planeja trazer Mirabela a Goiânia para se apresentarem no ano que vem.
Embaixador da música brasileira
Quando jovem, Clóvis alimentou por alguns anos o sonho de seguir a carreira da diplomacia. Afinal, ele se formou em Direito e sempre teve enorme interesse em estudar línguas, sendo fluente em vários idiomas. Hoje, considera-se sim um diplomata – mas da música brasileira.
Nestas quatro décadas vivendo na Alemanha, sempre procurou incluir nos seus concertos e recitais – e ensinar a seus jovens alunos – a música de compositores como Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Ernesto Nazareth, Francisco Mignone, Marlos Nobre, Osvaldo Lacerda.
O que o move, acima de tudo, é sua paixão pela música e um desejo de sempre estar aberto a novas experiências. O mesmo ânimo e a mesma inquietação do menino levado que perturbava o sossego do consultório do pai, anexo à casa da Rua 7, ouvindo Brahms e Stravinsky no último volume na vitrola da família, ainda permanecem no artista maduro e cosmopolita.
Assista ao recital de Clóvis Alessandri em agosto de 2014, no Centro Cultural UFG.