“Infelizmente o Brasil das redes sociais é um país conservador, misógino, racista. É isso que cada vez mais tem se mostrado.” O comentário não é de um sociólogo, de um militante político, de um ativista pelos direitos humanos. A triste constatação acima é do narrador Milton Leite, do canal a cabo SporTV, feita logo após o desabafo da nadadora Joana Maranhão, que explicitou o quanto já fora e continuava sendo agredida pela internet por não ter passado à final em sua prova nas Olimpíadas do Rio de Janeiro.
“As pessoas não gostarem do meu rendimento, eu compreendo. Agora, desejarem que eu seja estuprada, que minha mãe morra, que um bandido me mate, que eu morra afogada, que eu inventei a história da minha infância para estar na mídia, aí isso ultrapassa. As pessoas se sentem seguras para escrever isso porque estão atrás de um computador”, afirmou a atleta. Sim, Joana Maranhão está certa: tem muita, mas muita gente mesmo passando da conta. É uma abominação quase incompreensível que uma pessoa reserve parte de seu tempo para ir no perfil de alguém que sequer conhece pessoalmente em uma rede social para xingar, ofender, agredir.
É espantoso que tal comportamento degradante ganhe novo fôlego justamente em tempos de Jogos Olímpicos, em um evento que busca o congraçamento. A judoca Rafaela Silva, medalha de ouro no Rio, lembrou que quatro anos atrás, em Londres, quando perdeu uma luta por um golpe considerado proibido, foi achincalhada por racistas que escreveram que ela era “uma macaca que deveria estar na jaula”. Mesmo sagrando-se campeã, o fato de Rafaela ser homossexual e ter uma companheira motivou novos ataques, possivelmente de quem recalca o desejo de viver o mesmo que ela.
É quase evidente que esse pessoal precisa de tratamento. E também de vigilância e punição, em muitos casos. São doentes, têm problemas psiquiátricos sérios, são perigosos. A questão é que há cada vez mais gente assim. E esses indivíduos se consideram donos da razão, juízes e carrascos, deuses que tudo podem. Nessa toada, no ritmo frenético e sem reflexão das redes sociais, onde há total ausência de filtros e, não raro, de civilidade também, o Brasil vai se transformando no país do xingatório, dos cães raivosos, dos lunáticos do teclado.
Essa forma de se portar, tão alimentada nos ambientes virtuais, migra também para a vida real, o que torna tudo ainda mais complicado. A própria Joana Maranhão já foi hostilizada publicamente. Recentemente, a atriz Letícia Sabatella, que é contra o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, foi xingada durante uma manifestação em Curitiba. Chamaram-na de puta por ela ter uma opinião política diversa daquele grupo. Ela filmou o episódio e vemos pessoas vestindo roupas de marca ou camisas da Seleção Brasileira enfurecidas, como se estivessem sido inoculadas por algum vírus estilo The Walking Dead. Se pudessem, comeriam os miolos da atriz.
“É uma abominação quase incompreensível que uma pessoa reserve parte de seu tempo para ir no perfil de alguém que sequer conhece pessoalmente em uma rede social para xingar, ofender, agredir.”
A briga política que domina o País é um elemento nas visões violentas e intolerantes que se disseminam pelas redes sociais e chegam a atos concretos de covardia. A divergência vira inimizade e a inimizade vira perseguição. A atmosfera fica irrespirável e até quem prega um pouco de equilíbrio é atingido, chamado de “isentão”, acusado de não tomar partido só porque não desfia impropérios para atacar os que pensam de forma diferente. No hospital, no restaurante, na praia, todo lugar é lugar para tirar satisfações de desconhecidos; toda hora é hora para apontar dedos, lançar perdigotos enfurecidos, cantar o Hino Nacional em saudações que lembram a loucura fascista ou a cegueira stalinista. As pessoas estão perdendo o prumo.
Aqueles que não excluem os amigos que pensam de forma diversa, que não optam pelo confronto exacerbado, que não adotam posturas de galos de briga, são cobrados, como se o fato de ter um pouco mais de educação fosse a atitude inadequada e não o contrário. O clima no País é tão destrutivo que ninguém escapa à contaminação. Professores são acusados de doutrinar seus alunos e já há movimentos organizados que pedem uma tal de “escola sem partido”, aberração que compromete o ensino plural e o fomento do bom debate. Cultiva-se a ignorância, ataca-se o pensamento, louva-se a estupidez. Políticos que fazem apologia a crimes como estupro e tortura viram “mito”.
“Cultiva-se a ignorância, ataca-se o pensamento, louva-se a estupidez. Políticos que fazem apologia a crimes como estupro e tortura viram “mito”.”
Como se todo esse trágico cenário por si só já não bastasse, nos xingamentos vai embutido um indisfarçável desprezo pelas mulheres, pelos homossexuais, pelos negros. O sexismo, a misoginia, o racismo e a homofobia brotam desses desvarios, transformando as vítimas em culpadas, mirando sua honra, sua capacidade, diminuindo seu valor. Esse horror que vemos nas redes sociais contra gays, contra negros, contra pobres, contra nordestinos, contra refugiados espelha a marcha à ré que o País engata em vários campos.
Há uma desconstrução de avanços civilizatórios, a disseminação do desrespeito e o soterramento dos erros históricos que já cometemos e que parecemos tentados a repetir. Freud, que precisou migrar da Áustria para fugir da barbárie nazista, alerta, no clássico texto A Psicologia das Massas, que não chega a ser surpreendente que um movimento coletivo, mesmo quando caminha flagrantemente para o lado errado, para algo nocivo e pérfido, basta-se a si mesmo, o que o deixa com a capacidade de julgar autonomamente da melhor maneira.
Segundo o pai da psicanálise, o conforto de estar do lado da maioria ou inserido em um grupo explicaria uma série de atos que um indivíduo provavelmente não teria coragem de cometer em outras condições. Mesmo criticando algumas abordagens mais radicais, que dão às massas o perfil de cordeiros obedientes, Freud reconhece que a força da coletividade pode, sim, exercer efeitos deletérios e usa a Igreja e o Exército como exemplos, já que em ambas as instituições, em sua visão, podem ser percebidos transes e posturas acríticas. Seriam as vidas anímicas guiadas, em diferentes graus, por sugestões sedutoras ou expressões violentas catárticas.
“Freud, que viu de perto povos embarcarem em aventuras totalitárias, em ideias grotescas de diferenciação e pretensa superioridade, sabia do que falava. É bom ouvir o que dizem as pessoas que passaram por tais experiências traumáticas causadas pela loucura que, de tão repetida, contagiou sociedades inteiras. No filme A Fita Branca, o cineasta Michael Haneke mostra como a violência cotidiana e individual fomenta o impensável.”
Freud, que viu de perto povos embarcarem em aventuras totalitárias, em ideias grotescas de diferenciação e pretensa superioridade, sabia do que falava. É bom ouvir o que dizem as pessoas que passaram por tais experiências traumáticas causadas pela loucura que, de tão repetida, contagiou sociedades inteiras. No filme A Fita Branca, o cineasta Michael Haneke mostra como a violência cotidiana e individual fomenta o impensável. Foi assim com o nazismo. Alguém pode dizer que é exagero comparar os haters (aqueles que se aplicam em odiar o outro na internet) com os seguidores de Hitler. Será mesmo? Se alguém deseja o estupro, o apedrejamento, a morte de uma outra pessoa que sequer conhece, por que não seria capaz de eliminar essa mesma pessoa se a lei lhe facultasse essa chance?
O nazismo só foi possível porque “pessoas de bem”, “incapazes de fazer o mal”, o permitiram, quando não o estimularam. E é bom lembrar que a primeira perseguição aos judeus no regime nazista foi feita por meio da ofensa. É bom lembrar que os ataques que os nazistas lançavam contra os homossexuais não diferiam, em conteúdo, das mensagens regadas a ódio que vemos ser lançadas hoje contra os gays em muitos perfis de gente bem nascida e que se considera “normal”. O xingatório gratuito e indiscriminado é, sim, o ovo da serpente.
Excelente texto, Rodrigo! E vem a calhar nesses tempos de intolerância. Parabéns!
Desculpe-me, Rogério, confundi o seu nome no meu comentário.
O meu sentimento neste momento por que passa o Brasil é de muita tristeza e perplexidade, tentando encontrar em que ponto da história aquele povo tão afetuoso, fraterno e acolhedor se transformou e deu lugar a essa gente raivosa, intolerante e preconceituosa. Ou esse povo na verdade nunca existiu, apenas os sentimentos estavam latentes e a guerra pelo poder os fez aflorar, incentivando essas pessoas a saírem do armário com total liberdade para destilar ódio por onde passa e pelos ambientes que frequenta? Eu estou realmente muito assustada com tudo isso.