De San Francisco (EUA) – Muitas pessoas mundo afora que já se aventuraram por San Francisco (EUA) se apaixonaram pela cidade e aqui deixaram seu coração como George Cory e Douglass Cross que, nostálgicos, compuseram nos anos 1950 em Nova York I Left My Heart in San Francisco, sucesso na voz de Tony Bennett. Não é difícil entender por que isso acontece. Encantadora pela sua paisagem cênica e arquitetura vitoriana, San Francisco guarda características únicas e um estilo de vida muito diferente de tradicionais cidades dos Estados Unidos que cultivam o American way of life. San Francisco tem alma rebelde.
Com seus surpreendentes pouco mais de 800 mil habitantes, San Francisco é a mais povoada cidade de sua península que reúne outras dezenas de localidades. Cerca de 7 milhões de pessoas estão diretamente vinculadas a este centro financeiro e cultural da Costa Oeste dos Estados Unidos. Em que pesem as dificuldades impostas pelas companhias aéreas que atualmente obrigam uma jornada de quase 24 horas aos brasileiros que desejam aportar por aqui – não há voos diretos do Brasil para San Francisco –, a cidade merece ser visitada. E não apenas por seus já icônicos cartões-postais, mas também por seu estilo de vida pautado num histórico de diversidade e inclusão, agora em risco.
Os últimos dados oficiais mostram que mais da metade dos moradores de San Francisco é formada por imigrantes, principalmente asiáticos (33%), seguidos de hispânicos (15,3%). Esta é uma realidade de toda a Bay Area, como os nativos denominam San Francisco e cidades adjacentes. Por isso, à primeira vista, é normal termos a sensação de estar num país diferente, da Ásia ou da América Latina, dependendo do bairro. Essa diversidade étnica obriga o plurilinguismo em avisos oficiais, como no interior de veículos do transporte coletivo, onde é ouvido o inglês, o espanhol, o chinês e o tagaloh (idioma filipino).
A profusão de raças presente desde os primórdios de San Francisco está retratada nos negócios. Em qualquer esquina há restaurantes ou mercados voltados para a colônia estrangeira e seus descendentes e para a leva de turistas que chegam por aqui todos os dias. Não por acaso um dos fast foods mais vendidos em San Francisco é o burrito, uma tortilha grande de farinha de trigo que envolve vários ingredientes, entre eles arroz, feijão e carne. A concepção original veio da mexicana Ciudad Juarez, na fronteira com os Estados Unidos, mas o burrito aqui ganhou identidade própria a ponto de muitos acreditarem que a iguaria é mais californiana do que mexicana.
Cultura LGBT
Berço da contracultura na década de 1950 e da cultura hippie na década seguinte, San Francisco atraiu nos anos 1970 uma grande leva de homossexuais. Símbolo do movimento LGBT, a bandeira arco-íris foi criada na cidade por Gilbert Baker. Atualmente, estima-se que 15% da população da cidade seja formada por gays, lésbicas e transexuais. É uma comunidade organizada e responsável por grandes transformações no comportamento não apenas dos moradores locais, mas também de políticos que definem ações consideradas essenciais para essa população. A bandeira arco-íris está visível em vários pontos da cidade.
Nos últimos anos outra categoria de moradores tem alterado substancialmente a cena de San Francisco. São os trabalhadores do Vale do Silício, ao sul da cidade, em localidades como Santa Clara, Palo Alto e San José. A meca da inovação tecnológica atrai jovens adultos de todo o mundo com altos salários. Muitos optam por viver em San Francisco, onde há uma intensa vida cultural, noturna e financeira, além de uma enorme área verde, o Golden Gate Park. Essa turma também impulsiona a história de amor que a cidade tem com a bicicleta, respeitado meio de transporte, embora San Francisco tenha sido erguida sobre mais de 40 colinas.
O enorme fluxo de trabalhadores altamente remunerados a partir dos anos 1990 elevou substancialmente os preços dos imóveis. Segundo o site imobiliário Zillow, um locatário médio gasta 41% de sua renda para morar na cidade. No centro de San Francisco, o aluguel de um apartamento de três quartos ultrapassa a casa de 6 mil dólares. Esse movimento da bolha tecnológica do Vale do Silício tem provocado temores.
Recente estudo da Policylink, instituição que pesquisa aspectos econômicos e sociais norte-americanos, mostra que até 2040 a cidade será a mais branca da Bay Area, uma situação bem diferente dos anos 1980, quando chamava a atenção por ser uma ilha de diversidade. “A diversidade e a identidade como uma cidade progressista estão seriamente em risco. Na verdade, um olhar honesto sobre os dados mostra que é cada vez mais uma miragem”, comentou Sarah Treuhaft, diretora da instituição quando o estudo foi divulgado. A demanda por imóveis na região central de San Francisco tem expulsado da Mission District muitos chicanos para áreas periféricas. Os latinos trabalhadores já não conseguem competir financeiramente com a turma high tech.
Um local histórico
Mission District é o bairro mais antigo de San Francisco. Ali está a Missão Dolores, estabelecida em 1776 quando a Califórnia era território espanhol e também o parque homônimo, muito procurado em dias ensolarados. Nos últimos anos, lojas e bares da região, grande parte deles localizados na Valencia Street, se modernizaram para se adaptar ao estilo dos novos moradores. Na área da 24th Street, os latinos, em especial mexicanos, permanecem fortes com suas cores e sabores. Nas proximidades, entretanto, é histórico o movimento de tráfico de drogas, de moradores de rua e de violência.
A insanidade do mercado imobiliário de São Francisco deixa a olhos vistos um drama social ainda mais pungente. Contagem realizada em janeiro de 2016 aponta 6.500 pessoas vivendo nas ruas. Depois de Nova York, é a cidade norte-americana com maior número de sem-tetos. Num universo de 100 mil habitantes, 795 não têm onde morar. Muitos perderam suas casas a partir da crise imobiliária de 2008. Barracas e pessoas maltrapilhas são comuns na cena urbana da cidade.
No início do ano, um empreendedor do Vale do Silício que mora em São Francisco decidiu escrever uma carta aberta ao prefeito da cidade expondo sua frustração de encontrar moradores de rua em seu caminho. “As pessoas ricas que trabalham ganharam seu direito de viver na cidade. Eu não deveria ter que me preocupar em ser abordado. Eu não deveria ter que ver a dor, luta e desespero dos moradores de rua todos os dias”, disse ele. Anteriormente outros high tech condenaram o problema, mas esse em especial foi surrado na internet. O fato é que os desabrigados de San Francisco têm incomodado, e muito.
Política e problemas sociais
Na última semana de junho, num esforço coordenado pelo editor-chefe do jornal The San Francisco Chronicle, Andrey Cooper, 70 veículos de comunicação escancararam o drama, colocando o tema na ordem do dia dos debates políticos. Para Andrey, San Francisco parece caminhar contra a maré. “Nós representamos a região mais inovadora do mundo”, afirmou sobre a necessidade de se criar soluções rápidas e inteligentes para conter o avanço dos homeless.
Dramas à parte, a ainda libertária San Francisco tem muito a ser explorada. Para quem gosta de sair do usual roteiro turístico vale a pena bater pernas para apreciar a linda arquitetura da cidade. A partir da corrida do ouro em 1849 até 1915, cerca de 50 mil casas em estilos vitoriano e eduardiano foram construídas em San Francisco. Muitas desapareceram durante as duas grandes guerras mundiais, mas as que permaneceram proporcionam uma aparência única à cidade. Por outro lado, em uma única rua é possível encontrar distintos estilos arquitetônicos de épocas diferentes.
O Golden Gate Park é destino para um dia inteiro de andança, mas é bom saber que perambular por San Francisco exige sempre um casaco à mão, não importa a época do ano. Por estar numa península, o vento do Pacífico é constante. E não apenas isso. “O que San Francisco tem de tão único?”, pergunto ao bailarino brasileiro Douglas Almeida, há 15 anos na Bay Area. “Ah, o fog, sem sombra de dúvida”, ele responde. Fog City é outro nome comumente atribuído a essa cidade californiana cuja neblina que surge como um manto do Pacífico está indissociavelmente vinculada ao seu cenário. O nevoeiro aparece com maior frequência no verão e, além de cobrir o seu principal cartão-postal, a ponte Golden Gate, também provoca a queda da temperatura.
O vento, habitante local
“Seja bem-vindo a San Francisco!”, adoram dizer os locais quando se deparam com visitantes incomodados com o vento frio, ainda que seja verão. E sempre tem alguém para lembrar da famosa frase atribuída ao escritor Mark Twain: “The coldest winter I ever spent was a summer in San Francisco”. O tema é tão frequente que em 2005 o The San Francisco Chronicle tentou colocar um ponto final na história. “Isso é quase um clichê em San Francisco, uma invenção de origem desconhecida, a coisa mais legal que Mark Twain nunca disse”. Talvez por se encaixar tão bem à atmosfera da cidade, 11 anos depois dessa tentativa de esquiva do estereótipo, nativos continuam reafirmando que foi aqui que o escritor norte-americano passou o seu mais frio inverno num verão.
Às vezes polêmica por aparecer sem ser convidada nos poucos dias de verão, a neblina foi personificada em 2010 por um aficionado. Karl, the Fog nasceu como uma conta no Twitter. O dono da iniciativa permanece anônimo até hoje. Ao SF Weekly, ele explicou que a ideia surgiu depois de ouvir os amigos reclamando do nevoeiro que, para ele, sempre foi misterioso e romântico. “Achei que o nevoeiro poderia ter uma chance de se defender”. Depois do Twitter, Karl, the Fog foi para o Facebook e Instagram e o dono da conta acabou sendo contratado pela companhia aérea Virgin America como “conselheiro de tempo oficial”.
Karl, segundo seu idealizador, vem de um personagem do filme Big Fish, de Tim Burton, um gigante incompreendido. Se você ainda não tem uma viagem marcada para essas bandas, vale a pena conferir o vídeo de 2 minutos assinado por Dann Petty que homenageia o fenômeno metereológico. Em Hey Karl, o diretor mostra a força da neblina no cotidiano de San Francisco. “Uma visão única e inspiradora”, segundo Petty.
Depois de ler em um fôlego o artigo de Malu Longo sobre São Francisco me deu vontade de pesquisar mais sobre a cidade. E sou moradora da Bay Área há quatro anos. Incrível o que um bom texto consegue fazer com o leitor. A jornalista aguçou a minha curiosidade, o meu desejo de ir mais a fundo, de saber mais sobre sua história.
Ler Malu Longo é sempre um prazer. A certeza de um bom texto, cheio de informação e estilo.
O texto da Malu me fez passear por São Francisco , e deliciar toda beleza, história e diversidade desta terra.