Ora mais, ora menos, eu tropecei tantas vezes nas pedras que o Destino atirou em meu caminho que me perguntei, um dia, se eu seria o cão danado da vez. Evidentemente, não se tratava de algo premeditado, como se os deuses sofressem de desatinos e quisessem aplicar-me rasteiras implacáveis. Mas, quando parecia que eu seria esmagado, eis que a literatura e a música me estenderam mãos repletas de signos, convidando-me à vida e ao prazer estético.
Que não me julguem mal os amigos psicanalistas, mas esta é a única terapia que funciona comigo: ler e ouvir música, sem hora para começar ou para terminar. Não que eu seja dono de uma tristeza crepuscular ou tenha uma depressão para a qual não haja remédio, embora saiba que a leitura e a música sejam a minha saúde mental, para o que der e vier, todos os dias. Explicando de outra perspectiva: se você é filho de Obaluaiê, os seus passos estão protegidos, o seu corpo fechado e a cabeça tranquila. É por isso que saúdo aqui o meu orixá:
“Atotô, meu pai!”
Há muitos anos, o que segura a minha barra não é o Prozac, mas a Arte, pelas suas funções indispensáveis, pelo apaziguamento que oferece, pelo distúrbio que causa e pela curiosidade que cega. As sinfonias, os concertos, o jazz, o blues, o rock e a MPB sempre ampararam a minha alma e, por isso, não caio em pisos escorregadios nem levo mais lenha do que possa carregar. Como é bom dizer: não há azar que me faça esquecer a sorte.
“Há muitos anos, o que segura a minha barra não é o Prozac, mas a Arte, pelas suas funções indispensáveis, pelo apaziguamento que oferece, pelo distúrbio que causa e pela curiosidade que cega”
Se não por todas as magníficas telas do Renascimento, do Barroco, do Romantismo e do Modernismo, que seja então pelas imagens que o cinema nos legou em filmes que nos perturbam pelo seu realismo ou nos encantam pela sua alegria, anormalidade, fantasia e inteligência. A visão de uma tela de Velázquez, de Caravaggio e de Corot é tão valiosa quanto os fotogramas de Eric Rohmer, Kurosawa, John Ford, Fellini, Béla Tarr.
Por causa dos estetas, a vida é suportável, apesar de tudo. Eu lhes devo a maior parte da minha vida − e não sei como recompensá-los −, na minha vã luta contra o tédio, o dégoût que infecciona e destrói a alegria e a felicidade de viver.
A Arte − a grande Arte − que, nos meus encontros com as interpretações de Paul Desmond, Hodges, Coltrane, Chet Baker, Miles Davis, Coleman Hawkins e com o canto de Billie Holiday e Ella Fitzgerald, os quais sempre entonaram a melodia dos meus dias vazios − essas vozes do inescrutável jazz. Estes aí não são, entretanto, músicos − são lendas.
Arte que está inscrita no tempo em que, no sul dos Estados Unidos, havia a vasta e impiedosa lavoura de algodão.
Em outro lugar, Arte repleta de melodias belísimas, nuances, ritmos e sotaques, que Ismael Silva, Cartola, Aniceto do Império, Noel Rosa, Caymmi, Paulinho da Viola, Tom Jobim e Chico Buarque, entre outros gênios, como Drummond, sopram nos meus ouvidos mal começa a manhã .
No blues e no samba, sempre lavei a roupa suja da minha alma; na literatura, eu a enxaguei.
Porém, foi no rock que encontrei as provocações que me arrastaram a experiências lisérgicas e tribais. Rock, é claro, sem prazo de validade. A primeira viagem foi tão boa quanto a leitura de Walt Whitman, numa tarde azul de brigadeiro, com direito a rasante de passarinho.
Apesar de tão essencial à minha vida, não almoço nem janto Arte; Flaubert e Tarantino, no entanto, integram outro tipo de fome − a fome da linguagem virtuosa: enquanto um esmerava forma, o outro abre o baú das fabulações imprevisíveis.
Sem a Arte, confesso, não conseguiria o equilíbrio e a força que, como os de um Jedi, dão-me energia para seguir em frente − e não ser derrubado no caminho por um ser amorfo e rastejante.
(De Entre as Folhas do Jardim, livro de crônicas inédito)
Então somos dois. Também sou filha de Obaluaiê (Atotô!!!) e “sofro” dos mesmos “males” . Nada de errado nem patológico: nem depressivo nem melancolia. Simplesmente uma forma intimista de se sentir à vontade com isso tudo. Das músicas aos filmes. Da arte visual à filosofia. Da psicanálise e assemelhados à história. Isso é uma ótima forma de viver a vida. Meu trabalho que se confunde com hobby. Beleza!!!
Texto belo sobre a Arte. Viva as Musas, filhas de Mnemosine.
Atotô, Valquíria! Há no mundo almas que são parecidas, sem precisar recorrer a arquétipos. Nós respiramos uma mesma atmosfera cultural.
Abraços