Do Rio de Janeiro – Quem te viu, quem te vê! A Prefeitura do Rio de Janeiro usou o título da música de Chico Buarque para enfatizar que a Cidade Maravilhosa mudou com os Jogos Olímpicos 2016. E mudou mesmo, não é propaganda enganosa.
Claro que a capital fluminense, um dos centros urbanos mais complexos do mundo – ocupações desordenadas em um relevo acidentado, águas poluídas, trânsito pesado, violência alarmante –, não virou uma Nova York. Longe disso. Ainda há muito o que fazer, mas a Olimpíada teve o poder de recuperar áreas há décadas degradadas, de tirar do papel projetos adiados por muitos governos, de integrar com avenidas e transporte zonas ricas e pobres da cidade.
O chamado legado olímpico deixado para o Rio de Janeiro é visível em certos pontos, mas ainda um desafio em outros. É preciso elogiar a melhoria no transporte público, um calcanhar de aquiles de todas as capitais brasileiras.
Cerca de 120 km de novos corredores com ônibus articulados e linhas integradas, os BRTs, conectando bairros distantes a pontos estratégicos, como o Terminal Alvorada (Barra da Tijuca), Riocentro e Aeroporto do Galeão (Ilha do Governador) são quase um sonho para moradores das zonas oeste e norte, onde ficam os bairros mais populosos do Rio. Ao todo, são três linhas (Transolímpica, Transcarioca e Transoeste) novinhas em folha servindo à população.
Durante os jogos, os BRTs levavam os torcedores para os locais das disputas, como o Parque Olímpico da Barra, as piscinas do Parque Aquático Maria Lenk, os pavilhões do Riocentro e o complexo olímpico de Deodoro. Agora, eles servem a milhares de pessoas que não tinham uma opção viável para chegar a partes da cidade mais distantes.
Muitos subúrbios foram contemplados com as linhas de BRT, como Madureira, Campo Grande, Irajá, Taquara, Curicica e Tanque. Com estações em grandes avenidas ou interligadas a terminais de ônibus e dos trens da Central do Brasil, os longos veículos azuis articulados agora levam os usuários com mais rapidez a estações de metrô rumo à Zona Sul ou para os condomínios e lojas da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá.
Números
Durante as Olimpíadas, os BRTs transportaram quase 12 milhões de pessoas. Já as 4 linhas do metrô ficaram ainda mais cheias no período, levando pela cidade quase 14 milhões de passageiros. Os trens dos VLTs se incumbiram de transportar mais de 700 mil pessoas pela região central do Rio.
Uma das novidades mais esperadas na malha de transporte do Rio finalmente virou uma realidade com os Jogos Olímpicos. Foi inaugurada a Linha 4 do metrô, algo de que muita gente chegou a duvidar que aconteceria após anos de uma obra que infernizou os cariocas.
Uma grande estação integrada de BRTs e metrô foi construída no Jardim Oceânico, na entrada da Barra da Tijuca, para o novo trajeto. São 4,5 km, mas parecem dez vezes mais, tamanha a complexidade do projeto. O metrô, que terminava em Ipanema, agora percorre bairros onde até algum tempo atrás seria impensável sua presença, como Leblon, Gávea, Lagoa e São Conrado.
Essa nova linha, que ficou pronta em cima da hora para a Olimpíada, é um feito da engenharia. Ela passa por baixo do Jardim de Alah (na fronteira entre Ipanema e Leblon) e perfura duas enormes montanhas, percorrendo um trajeto que fica, literalmente, debaixo da Pedra da Gávea e da Rocinha.
Com trens novinhos em folha, a linha foi de uso exclusivo dos visitantes com ingressos para os Jogos Olímpicos durante o evento, mas já foi liberada para toda a população. Quem sai do Centro ou da Zona Sul não precisa mais pegar os túneis para chegar à Barra, o que significa muito para os cariocas. As montanhas do Rio são obstáculos naturais à mobilidade urbana e as avenidas ficam atulhadas de veículos.
Outra grande conquista para a mobilidade urbana da cidade foi a inauguração da linha do Veículo Leve Sobre Trilhos, o VLT. O monotrilho, instalado nos moldes do que funciona muito bem em Amsterdã, corta a região central, passando por pontos muito frequentados, como a Cinelândia, o Largo da Carioca, as proximidades do Palácio do Catete, parte do Aterro do Flamengo e o mercado popular do Sahara.
O veículo é muito confortável e silencioso, mas os cariocas terão de se acostumar a olhar para os lados para evitar atropelamentos, já que ele atravessa uma longa extensão da agitadíssima Av. Rio Branco e cruza a Av. Presidente Vargas em frente à Igreja da Candelária.
Nem todas as linhas do VLT estão em funcionamento. Uma delas, que vai chegar até a Praça Quinze, onde ficam os terminais das barcas que fazem a ligação entre o Rio e Niterói, ainda não entraram em operação.
A linha que já funcionou durante a Olimpíada, porém, é extremamente útil. Ela começa no Aeroporto Santos Dumont, às margens da Baía de Guanabara, e chega até o Terminal Rodoviário Novo Rio, desfilando, a 15 km por hora, por estações que foram instaladas na revitalizada zona portuária do Rio. Este local, aliás, é a joia da coroa das melhorias na cidade.
Desde as proximidades do Aeroporto Santos Dumont, indo até a Praça Mauá, um boulevard com mais de 3 km de extensão foi criado onde antes só havia viadutos insalubres, locais escuros e entradas esquisitas para os muitos quartéis militares que ficam por ali.
O elevado que sombreava essa área degradada foi demolido e um túnel, batizado com o nome do ex-prefeito carioca Marcelo Alencar, foi construído, ligando a região do antigo Paço Imperial à das docas, já no porto do Rio. É uma via que passa debaixo do que transformou-se em mais um cartão-postal da cidade.
Números
A Prefeitura do Rio de Janeiro calcula que cerca de 4 milhões de pessoas passaram pelo Boulevard Olímpico da zona portuária durante as Olimpíadas. Palcos com shows diários ajudaram a atrair os visitantes e a população local, mas as paisagens do lugar ajudam a explicar todo esse sucesso de público.
O Boulevard Olímpico abrange, entre outras atrações, o Museu Histórico Nacional, museus da Marinha e do Exército, a entrada para a Ilha Fiscal, o antigo Paço Imperial. Passa pela frente da Candelária e pelo Centro Cultural Banco do Brasil, e vai adiante, até o extinto Píer Mauá.
Nele, imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico sofreram uma ampla reforma e dois museus foram criados. Um deles é o Museu de Arte do Rio, o MAR, junção de um edifício clássico com uma construção moderna. A grande estrela, porém, é outra.
Em uma espécie de península, que antes era um terreno vago que avançava pela Baía de Guanabara, foi erguido o espetacular Museu do Amanhã. Com arrojado projeto arquitetônico assinado pelo espanhol Santiago Calatrava, o Museu do Amanhã parece uma nave espacial (ou um monstro marinho saindo das águas da Guanabara), que tomou seu lugar na paisagem do Rio.
Sua vista é espetacular. Com praças, jardins e alamedas em volta, toda a região ganhou quiosques, restaurantes e bares, virando o novo point da boemia carioca. Mesmo porque não muito longe dali fica a Lapa.
O interessante dessa obra é que ela tem um caráter histórico importante. Toda essa região conta um pouco da trajetória não só do Rio, mas do País. Por ali chegou a família real portuguesa, em 1808. Foi ali que desembarcaram milhões de escravos vindos da África, abrindo a ferida da submissão forçada de seres humanos, mas também iniciando a rica influência negra em nossa cultura.
Ali foi assinada a Lei Áurea, em 1888, pela Princesa Isabel. Grandes eventos nacionais, do Império e da República, tiveram na zona portuária do Rio o seu cenário. Agora, ela retorna para o uso da população local e dos turistas que visitam a Cidade Maravilhosa.
Do outro lado do Rio de Janeiro, está o impressionante Parque Olímpico da Barra da Tijuca. As três Arenas Cariocas, a Arena do Futuro e o Estádio da Natação foram algumas das instalações construídas para os Jogos Olímpicos. Lindas, confortáveis, grandiosas, mas…? A pergunta se fez ouvir, claro, após as disputas.
As autoridades garantem que nada será desperdiçado. Os prédios foram montados no sistema modular, o que favorece o transporte de partes desses edifícios para outros lugares. É o que vai acontecer com o Estádio da Natação. As piscinas em que Michael Phelps fez história conquistando mais uma baciada de medalhas de ouro serão levadas para os bairros de Madureira e Campo Grande.
A Arena do Futuro também será desmontada, mas ficará no mesmo lugar. A previsão é que, em dois anos, nela esteja funcionando uma escola municipal. As outras arenas se transformarão em centros de treinamento para diversos esportes.
As quadras de tênis por onde desfilaram astros como Novak Djokovic e Rafael Nadal, passarão a sediar os principais torneios da modalidade no País. Já as enormes áreas de convivência do Parque Olímpico serão abertas ao público.
A intenção é transformar os generosos espaços em locais para apresentações culturais e esportivas. Mas será necessário uma manutenção cuidadosa, já que tudo ali parece um pouco exagerado.
Números
O Parque Olímpico da Barra da Tijuca tem a incrível extensão de 1 milhão e 180 mil metros quadrados. Cerca de 180 mil pessoas passaram pelo local diariamente durante as Olimpíadas. Já o Complexo Olímpico de Deodoro, que ganhou pistas de ciclismo BMX e de Mountain Bike, foi projetado pelo escritório paulista de arquitetura e paisagismo Vigliecca & Associados e tem uma área total de 500 mil metros quadrados.
Já o Complexo de Deodoro, o único a ser de fato construído em meio a comunidades mais pobres do Rio, é objeto de uma promessa ousada. As mudas de árvores que apareceram sendo plantadas por atletas na Cerimônia de Abertura serão cultivadas no local, que se transformará em um bosque.
Antes uma área militar ociosa às margens da Avenida Brasil, o local que sediou competições de canoagem e hipismo, entre outras, ganhará a função de ser um ponto urbano para uso da comunidade. Algo muito importante em uma região com poucas opções de lazer.
O Rio de Janeiro foi, inegavelmente, beneficiado com as Olimpíadas, mas também deixou escapar boas oportunidades. Talvez a maior delas tenha sido o fracasso em despoluir a Baía de Guanabara. Esse compromisso foi assumido – mas não cumprido – pelo poder público quando o Rio de candidatou como cidade-sede do maior evento esportivo do mundo.
O combate à violência também teve uma estratégia controversa. Durante os Jogos, houve mais policiamento, ainda que isso não tenha evitado todos os incidentes. No dia a dia sem jogos, porém, é difícil acreditar que continue assim. Áreas dominadas pelo tráfico vão permanecer existindo.
Se a Olimpíada falhou em auxiliar na solução de muitos problemas – o saneamento básico no Rio continua deixando a desejar, bastando olhar as lagoas fétidas que contornam o Parque Olímpico da Barra –, houve avanços inquestionáveis em outros campos. Os jogos não têm mesmo o poder mágico de resolver todos os gargalos, mas é capaz, sim, de mostrar que é possível melhorar a qualidade de vida de muita gente.
Nesse sentido, o Rio de hoje é melhor que o de ontem. A cidade ganhou novos espaços públicos, mais opções de transporte e uma grande injeção na autoestima. Poderia ter sido melhor? Poderia. Poderia ter sido pior? Ô, e como poderia!
Os legados olímpicos
Muito se fala que Barcelona, a linda cidade espanhola às margens do Mar Mediterrâneo, é um exemplo a ser seguido quando se trata de legado olímpico. A metrópole catalã se preparou bem para os jogos de 1992.
A mais vistosa de suas obras foi a revitalização de sua orla, antes um antro de gangues que disputavam quem cometia mais crimes. Ao lado do histórico bairro da Barceloneta, a área era intransitável, impedindo moradores e turistas de desfrutarem daquele litoral lindíssimo.
As autoridades ergueram ali a Vila Olímpica e outras instalações para competição, como o Porto Olímpico, e a região, antes relegada ao abandono, tornou Sant Marti um dos bairros mais exclusivos e caros de Barcelona. Luxuosos edifícios residenciais e de escritórios foram erguidos ao longo da Av. Del Litoral, lojas e cassinos abertos no entorno do Parc de Diagonal-Mar e um ancoradouro para iates e lanchas foi construído.
A Praia de Saint Sebastiá é uma das mais badaladas da cidade e toda aquela região, que se une à marina, ganhou vida. Gol do Barcelona! E foi golaço!
Mas nem tudo são flores nessa história. Subindo uma colina próxima à que é encimada pelo Castelo Montjüic, não muito longe da Fundação Juan Miró, está parte das instalações dos Jogos Olímpicos de 1992, incluindo o Estádio Olímpico, o complexo de natação Bernat Picornell – lá o nadador brasileiro Gustavo Borges pescou sua medalha de prata –, além do Palau Saint Jordi. E o que há hoje nessa elevação que dá uma das vistas mais espetaculares da cidade?
O Estádio Olímpico é um museu e abriga a Federação Catalana de Ginástica. Ok, tem sua função. Já o prédio da natação é subutilizado por não muitas pessoas que nadam nas piscinas olímpicas. Mas o prédio não é bem cuidado. Falta manutenção.
Já outros edifícios do entorno são alugados para convenções com temas bem longínquos do esporte. Não chega a ser algo vergonhoso para Barcelona, claro, mas também está longe de ser um orgulho, com exceção da revitalização do parque na montanha.
Outras antigas sedes olímpicas não aproveitaram tão bem o legado. A Cidade do México, sede dos jogos em 1968, guarda daquele evento – que era menos grandioso na época – um estádio olímpico que mais parece um mastodonte no meio da metrópole. Em Berlim, as instalações olímpicas são solenemente ignoradas por habitantes locais ou guias de turismo por terem sido erguidas para os jogos de 1936, quando Hitler quis utilizar a Olimpíada para provar a propalada “superioridade da raça ariana”.
O Estádio Olímpico está em uso, mas lá dentro foi escrita uma página vergonhosa para os alemães. Lá está a primeira vila olímpica permanente da história, que hoje é coberta por mato e com os prédios desabitados. É uma vila fantasma que também tem lá suas assombrações históricas.
Ótimo texto! Lindas fotos! Parabéns!