Ele não é figura conhecida que chame atenção de turistas em Pirenópolis, embora os apaixonados por fuscas devam suspeitar, ao se deparar com quatro deles estacionados na Rua Nova, de que ali, do lado esquerdo de quem a sobe, vive alguém que compartilha essa mesma paixão. Caso sejam um pouco mais curiosos, esses visitantes vão notar também a antiga oficina que funciona na sala da frente, com duas grandes portas voltadas para a rua, na sequência da porta de entrada para a residência no velho casarão colonial, de mais de 150 anos, que conserva ainda alguma nobreza, apesar do desgaste do tempo a exigir reparos.
Na tarde de uma segunda-feira de julho, pouco antes do fim do expediente, lá estava trabalhando o dono dos fuscas e da oficina repleta de velhas peças cobertas de graxa e poeira, embalagens descartadas e caixas empilhadas, uma parafernália que faz duvidar de que em meio a tamanha confusão um ofício possa ser executado.
Nas paredes de cor amarelo-ouro, em contraste com o verde dos portais, antigos cartazes da Festa do Divino, com a figura dos reis das Cavalhadas e de símbolos religiosos, deixam claras a fé e as raízes daquele senhor esguio, que veste roupas largas, confortáveis, botinas gastas e um pequeno chapéu preto a lhe proteger os olhos sem conseguir, porém, esconder a tristeza que eles transmitem.
Tristeza é tudo o que Jonas de Siqueira Filho não representa para os pirenopolinos, para quem ele é simplesmente Biti, sinônimo de criatividade, bom humor, piada e riso. Em qualquer situação, Biti surpreende com um trocadilho, uma ironia, uma percepção satírica do momento e dos interlocutores.
Ao ser indagado se teria alguns minutos para uma conversa sobre sua própria vida, faz curto silêncio antes de responder, colocando o dedo indicador um pouco abaixo do ponto de confluência das sobrancelhas. É isso que você quer? Sorrindo, traduz o gesto: entre-vista. Sim, é a resposta, com a justificativa singela de que não há pauta específica, apenas o interesse por um encontro para registrar traços deste pirenopolino com alma de humorista, tão querido na cidade pela alegria que proporciona. “São exercícios diários, a gente gosta de fazer graça sem segunda intenção.”
Explora como ninguém ambiguidades e cacofonias. O que na norma culta é desvio de linguagem, definido como um defeito acústico que produz um som desagradável ao ouvido, para Biti é matéria-prima com que elabora duplos sentidos, muitas vezes com apelos pornográficos explícitos.
Biti mostra-se acessível aos relatos que lhe são pedidos. Explica que nunca anotou nada do muito que improvisa, o que torna difícil oferecer uma amostra mais variada deste humor de circulação restrita aos habitantes da mesma aldeia, que em 7 de outubro emplaca 289 anos. Tempo suficiente para que se fortalecessem, ao longo de gerações, os laços entre os descendentes dos pioneiros que se fixaram naquele pedaço privilegiado de chão cercado de morros e ainda rico em Cerrado, berço de águas e cachoeiras.
Siqueira é família de artistas, músicos, mas Biti não perdoa a si e aos seus: “Siqueira, quando não é maníaco, é bobo ou tarado”. Tamanha acidez na autodescrição talvez espelhe a dor que sente, razão da tristeza inesperada no homem do riso. Fazia quatro meses da morte de sua mulher, Regina, pouco antes de completar 65 anos. Um golpe para ele que, mais velho (completou 80 anos no dia 8 de julho), não vê sentido nesta ausência sem remédio.
“Era companheira minha, desde o namoro foram 50 anos juntos. Porque não sou um caboclo assim que serve pra marido de qualquer muié. Ninguém ia querer eu, tinha de ser pessoa especial”, comenta, em lágrimas, passando a desfiar lembranças de como tudo começou, na época dos passeios de lambreta. “Eu era sem-vergonha, ela era namorada de um amigo, meti a colher de pau e deu no que deu.”
A amizade não acabou por causa disso, tanto que receberam a visita do velho amigo acompanhado da mulher dele. Curioso, nota Biti enquanto conta ? “no dia seguinte, ela (Regina) morreu”. Antes da perda do amor da sua vida, sofreram ambos com a morte de Bilu, cachorro que era mistura de raças. “Fez uma farta!” Não arrumou outro cão, mas tem um garnisé e um galo comum, que com periquitinhos e outros pássaros cuidam de movimentar o pequeno quintal.
De despedida em despedida, Biti foi se acabrunhando, e a reclusão, acentuada após uma fratura do fêmur, cerca de quatro anos atrás, tornou-se aguda. Não vai nem à padaria, um amigo busca o pão em troca de um aperitivo (cachaça), “já incluído no preço do pão”.
Dirigir, nem pensar! “Carro era prazeroso, agora é motivo de preocupação, o trânsito custoso. A época da gente já passou.” Refere-se ao prazer de tomar um gole mais raleado na beira do rio, onde ia pela farra. “Não gosto de mato.” Não comparece mais a velórios e enterros, como dita o costume local. Não foi ao da mãe, ao da irmã, Celestina, nem ao da mulher. Acredita ser defeituoso, muito emotivo, não gosta de ver morto. “Pra que vou me sacrificar?”
Assim, quase encolhido, passa os dias agora. Levanta cedo, às 6h30, embora esteja acordado bem antes, contando carneiros e ouvindo galo cantar. Depois vai pra oficina. “Na vida, a gente tem de caçar jeito de ir tapeando a si mesmo, se enganando para… (aguentar?, completo). Tem de encher linguiça.”
Com ele, mora Adriana, filha adotiva. Além dela, teve os filhos Emanuel, morto ao nascer (teria hoje 48 anos), Marcelo, 44 anos, e Márcio, 40 anos, que lhe deram quatro netos (duas mulheres e dois homens). Mas transparece solidão profunda. “A velhice é desgastante”, resume, depois de recordar uma trova. “É bem triste a minha vida/ Meu sofrimento é profundo/ Vivo cercado de gente/ E sozinho no mundo.”
A sobrevivência
Na pretensão de imitar Biti, diria que “os fuscas ofuscam tanto sentimento”. Estacionados dos dois lados da rua, diante da casa, os quatro antigos e antológicos carros da Volkswagen funcionam como chamariz para a oficina, onde tem sempre alguém chegando pra conversar. “É o único carro véio que dá pra rodar 40, 50 anos. A geração nova, deu dez anos, não funciona mais”, compara.
Já teve Rural, Jeep, Corcel, mas agora são os fuscas que o mantêm ligado ao que aprendeu a fazer ainda menino, consertando velocípede e bicicleta, depois lambreta e motos, até comprar um fusca e ter de aprender a consertar o próprio carro. “Toda vida fui pobre.”
O apelido também vem desde criança. Um dentre sete irmãos (três homens e quatro mulheres, duas delas já falecidas), dois dos meninos foram apelidados por um tio. Bitu e Biti ? “obtive desse jeito”. Desde então, Biti, o apelido, foi consolidando também um personagem que encobriu Jonas, o homem, agora mais transparente devido ao luto e à idade avançada, embora o humorista relute em ceder à desilusão.
Hoje, Biti sobrevive como sempre fez, negociando, “uma gambira, um comerciozinho”, que complementam a aposentadoria de um salário mínimo garantida quando fez 65 anos de idade. “A gente vai tangindo, nunca tive muito cobre. Mas o azeite nunca faltou nem a farinha”, reconhece agradecido, citando passagem bíblica em que uma viúva dá a um homem faminto o último alimento que tinha para os filhos, no Egito devastado pela fome. Era, na verdade, o anjo do Senhor, que assegurou a ela nunca secar o azeite da garrafa nem faltar a farinha do pão.
A base, filosofa Biti, é o amor ao próximo, o que não quer para si, não faça ao outro. “Não pode é fazer ruindade.” Por isso, mesmo atravessando o luto e com medo, tenta reagir. “Depressão é loucura, fraqueza de cabeça, sinto uma agonia, um pavor eu tenho!!!” Para resistir, procura meio de ficar alegre. “Cara feia não é carabina cheia. Tristeza não paga dívida.” Ainda: “Mulher tem enxaqueca. Homem enche a cueca.”
Em meio ao âmbar do entardecer, cujas projeções do horizonte colorido acentuam a melancolia na rua de calçamento de pedras e casas alinhadas, emergem palavras otimistas do pirenopolino lendário, quase num esforço para conservar a identidade que os embates do destino têm testado. “Pirenópolis é sempre Pirenópolis, aqui a gente vive de qualquer jeito, sem dinheiro, sem nada, mas vive.” E, “quando se vive no meio de gente inteligente, acaba não ficando burro”.
“Pirenópolis é sempre Pirenópolis, aqui a gente vive de qualquer jeito, sem dinheiro, sem nada, mas vive”
São pequenos grupos ou um e outro amigo que frequentam a oficina os ouvintes das tiradas de Biti, que ele fala e daqui a pouco esquece, tudo levado como brincadeira, gozação. Mas sentido intensamente, em conversas olho no olho com um “sujeito desinformatizado”, que critica a desatenção de filhos e netos, hipnotizados sempre pelo celular e outros gads. “Toda coisa demais, passa. A gente tem de ser comedido. Palavra meio pornográfica, cu-medido”, ri. “Vou-me indo. Vou-me já!”
Em família, seus chistes são frequentes. Como este, lembrado pela prima Sônia Maria Goulão. “Quando Sandro, sobrinho de Biti, ia tomar banho, a mãe dizia: ‘lava o pé direito’. Biti retrucava: ‘o esquerdo também!’”
Na graça e na fé, ele segue, buscando forças na convicção de que o fim é o começo de outra vida. “Vida eterna, obrigação da gente é acreditar, vai que tenha… obrigação nossa é acreditar porque é um lenitivo.” Outro consolo para ele, que detesta futebol e não gosta muito de televisão, é o hábito de recobrir de humor a realidade, nem que seja um mundo do passado. Cita trova do tio Tão Goulão (irmão de sua mãe Alcina): “Quem não conhece a castanha/ Não percebe o caju/ Boa massa/ Bom biju/ Barriga cheia/ E pau no…”
Velha casa na Rua Nova
“A casa, hoje no espólio do casal Jonas de Siqueira-Alcina Goulão, pertenceu ao Tenente José Gomes de Sousa, meiapontense. (Tenente José Gomes de Sousa: nasceu em 1810, na antiga Meia-Ponte, como todos os irmãos. Era filho do casal Alferes Antônio Gomes de Sousa-Ana Vitória do Nascimento. Desses genearcas procede a numerosa Família Gomes de Sousa, com as variantes Sousa Ramos e Santana Ramos). É uma veneranda casa de dois lanços, precisando de reparos, mas que conserva, felizmente, a frontaria do passado. Passou a bela vivenda para o domínio do Capitão Jerônimo José de Siqueira, que a doou ao genro, Homero Batista, falecido a 3/11/1902. A casa foi então levada para a hasta pública, sendo arrematada pelo Major Benjamin Constant Dias Goulão, tio materno de Jarbas Jayme, pela quantia de um conto de réis (1:000$000). O Major Benjamin residiu intermitentemente nessa casa, pois passava a maior parte do tempo em sua Fazenda Fachinal, no município, na bacia do Rio Capivari. E vendeu a vivenda, anos mais tarde, ao genro, Jonas de Siqueira, que nela residiu até falecer, em 3/9/1957. Falecida também sua viúva, Alcina Goulão, o casal não foi inventariado. Mora na casa Jonas de Siqueira Filho (Biti), que comprou os direitos hereditários dos irmãos. É um velho edifício colonial, de janelas e portas arqueadas, contando atualmente mais de 150 anos.”
Do livro Pirenópolis – Casa dos Homens, Volume II, de Jarbas Jayme e José Sisenando Jayme, Universidade Católica de Goiás, 2002). Ilustração de Pérsio Forzani.
(Este texto integra livro de memórias e perfis sobre Pirenópolis, em fase de elaboração)
Fala do ilustre Pirenopolino é sempre um grande prazer. Sempre que paro em sua porta ele nos atende com muita alegria e atenção, a prosa se estende ao lembrar do grande amigo piloto civil Ze Jaime, meu velho pai. Os seus olhos brilham ao falar do amigo de infância e a prosa transborda quando fala nos milhares de fusca que passarão em suas mãos e outras relíquias da sua época. Lembra quando chegou o primeiro Ford 22 na cidade e hoje podemos apreciar alguns de vários colecionadores da própria cidade e suas paixao por Fusca que se estendeu ao seu filho Marcelo, hoje um perito nato na mecânica dando continuidade a paixão do pai, seu Biti.
Um grande amigo da minha família em Pirenópolis.