De Brasília ? A cena icônica de Manoel e Rosa correndo desenfreadamente pelo sertão, um marco de Deus e O Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, abre o documentário Cinema Novo, exibido na terça-feira, dia 20, no Cine Brasília, na primeira noite da 49º edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O longa-metragem de Eryk Rocha, apresentado fora de competição, emocionou a plateia do festival ao, mais do que propor uma homenagem ou um registro formal, convidar o espectador para um diálogo vivo e dinâmico com o movimento que mudou o cinema brasileiro e, até hoje, como prova o diretor, ainda não perdeu sua chama revolucionária.
Com mais de 500 horas de gravações, Eryk Rocha, filho de Glauber, vale-se de material de arquivo como entrevistas antigas, depoimentos e recortes de jornal, mas, sobretudo, dos próprios fotogramas que nos anos 60 incendiaram o cinema brasileiro e o apresentaram ao mundo. “Pesquisamos 130 títulos, foi um trabalho de arqueologia e uma ideia que já dura cerca de nove anos. O filme surgiu porque, numa conversa com o Canal Brasil, percebemos que, apesar de várias obras comentando sobre o Cinema Novo através de seus expoentes, não havia um longa que abordasse o coletivo, o Cinema Novo como um movimento”, explica o diretor. O próprio cineasta lançou, em 2003, A Rocha que Voa, premiado documentário sobre seu pai.
“O filme tem, claro, um pouco de informação, no sentido tradicional do documentário, mas depois deixamos de lado qualquer vestígio de historicismo ou didatismo. Nosso desafio não era fazer um filme sobre o Cinema Novo, acho isso muito autoritário, totalizante. Procuramos um diálogo com o movimento e não apresentar um balanço dele”, argumenta Eryk Rocha.
“Nosso desafio não era fazer um filme sobre o Cinema Novo, acho isso muito autoritário, totalizante. Procuramos um diálogo com o movimento e não apresentar um balanço dele Eryk Rocha, diretor”
Uma das principais características do movimento ? uma atitude política que juntava arte e revolução – é o que faz do Cinema Novo algo tão importante na cultura brasileira. “Por um lado aquela geração viu o Brasil deixar de ser predominantemente rural para se tornar urbano. Por outro, eles leram bastante José Lins do Rêgo, Graciliano e Guimarães Rosa, entre outros nomes da literatura regionalista, que na verdade falava de um Brasil verdadeiro”, aponta o cineasta. “Havia também a influência de fotógrafos como Thomas Farkas e, principalmente, José de Medeiros, que a partir dos anos 40 mostrava um país em evolução”, acrescenta.
Contradições
Apesar dos inevitáveis destaques para a tríade Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade, o longa não se reduz a eles e se amplia ao dar ênfase a nomes menos conhecidos ou badalados, como David Neves. “Essa foi uma das nossas maiores preocupações. Era preciso mostrar que o Cinema Novo não era algo de três ou quatro diretores geniais apenas, mas resultado de várias cabeças pensantes que muitas vezes se uniam, um produzindo ou montando o filme do outro, trocando ideias, e, às vezes, farpas também”, comenta Eryk, lembrando que a tensão constante era outra marca do Cinema Novo.
“Havia uma diversidade também, não só estética, como um Glauber barroco e um Nelson Pereira mais realista, mas também ideológica em alguns momentos. Os próprios cineastas têm fases distintas”, observa o diretor, para logo depois explicar a citação a Luis Sergio Person e de Brasil S/A. “Ele realmente não se identificava com o movimento, mas ele entra no filme por isso mesmo, para abarcar as contradições do Cinema Novo”, justifica. Além disso, o filme inclui pioneiros como Humberto Mauro e Mario Peixoto (Limite).
“Queríamos criar um novo sentido a partir dos filmes citados, a partir de cada plano, muitos deles icônicos, não só para o Brasil, mas para o mundo”, explica o montador Renato Malone, para quem em vários momentos o diretor russo Serguei Eisenstein, do clássico O Encouraçado Potemkin, foi uma grande inspiração. “Queríamos não só a síntese do Cinema Novo, mas também criar um novo filme, algo que evitasse o anedótico, a nostalgia, o historicismo. O movimento buscava um cinema que tomasse as ruas e fosse ao encontro do povo brasileiro, mas ele foi desconstruído com o AI-5 enquanto um coletivo. A partir daí a unidade do grupo se rompe”, define o montador.
Outro norte para a montagem, complementa Eryk, foi provocar a reflexão não só em relação ao passado, mas ao presente. “Porfírio sendo coroado em Terra em Transe é o nosso golpista de hoje. São planos de um Brasil vivo. Qual é o Brasil de hoje? Como essa nova geração e o cinema brasileiro vão incorporar essa situação atual? Por isso exibir esse filme aqui em Brasília, nesse momento histórico, é muito emocionante para a gente. Vivemos em um país em transe. E isso nos reconecta ainda mais com o Cinema Novo”, reforça o diretor, que iniciou sua fala de apresentação do filme no Cine Brasília proclamando: “Eternamente, fora Temer!”
“Porfírio sendo coroado em Terra em Transe é o nosso golpista de hoje. São planos de um Brasil vivo. Qual é o Brasil de hoje? Vivemos em um país em transe Eryk Rocha, diretor”
O longa vai entrar no circuito comercial em 3 de novembro. No final do ano, o Canal Brasil vai exibir uma série com seis episódios, que também faz parte do projeto de Cinema Novo, coproduzido pelo canal.
Curta destaca expoentes da fotografia brasileira
Antes de Cinema Novo, foi exibido o curta-metragem Improvável Encontro, de Lauro Escorel, sobre a relação profissional e pessoal entre os fotógrafos José Medeiros e Thomaz Farkas, expoentes da fotografia brasileira entre os anos 40, 50 e 60. “É mais um filme sobre uma grande amizade do que sobre fotografia”, afirmou Escorel, que utiliza, além de material de arquivo e alguns depoimentos, a dramatização de entrevistas concedidas pelos biografados.
“Eles influenciaram o trabalho um do outro, registrando também as faces de um país em transformação e influenciando o fotojornalismo a seguir, além do cinema, claro”, aponta o diretor, um dos principais fotógrafos de cinema do País.
“Medeiros foi um professor de brasilidade para Farkas”, destacou. “Nesse sentido, procurei enfatizar a amizade entre eles, um filho de imigrante húngaro que apreciava uma fotografia formalista, e um paraibano que se destacou no fotojornalismo fotografando a espontaneidade do povo. Aos poucos, um se tornou inspiração para o outro”, conclui Lauro.
A colunista de ERMIRA viajou a convite da organização do Festival de Brasília