De Brasília ? Um documentário sobre índios, o longa-metragem Martírio, de Vincent Carelli, surpreendeu o público do Festival de Brasília na sessão da quinta-feira, dia 22. As 2h40min de duração do filme e a temática deixaram muita gente desanimada com o programa, mas quem se dispôs a acompanhar a última sessão da noite se sentiu agradecido. A plateia do festival aplaudiu o longa diversas vezes até durante a projeção. Envolvente do início ao fim, a produção relata a trajetória do povo Guarani-Kaiowá, que virou fenômeno nas redes sociais com a campanha em que milhares de internautas passaram a adotar o nome de um dos principais grupos indígenas do País em suas assinaturas, em 2012.
O motivo da campanha foi a denúncia do genocídio em andamento vivido pelos Guarani, que tentam reaver parte de seu território, na região do Mato Grosso do Sul, e têm sido sistematicamente assassinados pelos fazendeiros da região, por um lado, e acuados pela força da bancada ruralista no Congresso Nacional, por outro. A campanha das redes foi apenas a ponta do iceberg de um processo de aniquilação de um povo que vem desde o século 19 e a Guerra do Paraguai, no período do Império, passa pela Nova República, pelo positivismo humanista de Marechal Rondon, pelo desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e pela expansão para o Oeste, além da ditadura civil-militar e o agronegócio.
A empreitada para contar essa história longa e complexa tem em Vincent Carelli um grande narrador. Indigenista e cineasta, ele criou há 30 anos o projeto Vídeo nas Aldeias, que consiste basicamente em fornecer aos índios ferramentas para produzir audiovisual por conta própria, e não por terceiros. Vincent, que não dirigia desde o premiado Corumbiara, volta a filmar em Martírio, ao lado de Ernesto Carvalho, como uma resposta aos embates violentos deflagrados a partir de 2011.
“É um genocídio contemporâneo. Quando eu soube do assassinato de um cacique que eu filmei anos atrás, em 1988, foi impossível resistir ao chamado. Porém, diferentemente de outros filmes meus, desta vez eu quis me concentrar não em costumes ou ritos, na questão cultural, mas sim nos conflitos atuais e no modo de resistência de um povo”, explica o diretor.
“É um genocídio contemporâneo. Quando eu soube do assassinato de um cacique que eu filmei anos atrás, em 1988, foi impossível resistir ao chamado Vicent Carelli, diretor”
Por outro lado, continua o cineasta, em contraposição, o filme pedia mostrar a relação dos Guarani dentro de um contexto de embate com as instituições ao longo dos anos. “Eles têm a língua e a religião bem preservada, apesar de tudo, e ultimamente têm se organizado politicamente para o embate com as classes mais reacionárias do País na luta pelas terras. Infelizmente, a imprensa tradicional não tem dado o espaço merecido e então a internet e as redes sociais foram uma boa alternativa. O caso das assinaturas com Guarani-Kaiowá foi um belo exemplo disso”, destaca Vincent.
A resposta vibrante da plateia do festival ao filme não foi por acaso. Martírio, conta ele, foi pensado para ir além do circuito dos filmes indigenistas comuns. “Queríamos sair do gueto do filme etnográfico e expandir fronteiras. Claro que, por ser um indigenista, o meu filme tem mais informação do que um diretor que não fosse, e isso também facilitou meu acesso aos índios e à sua história”, conta o diretor, acrescentando que o longa foi produzido através de financiamento coletivo, o crowfunding.
Essa rede de pessoas que financiou o trabalho, acredita, também vai ser uma rede de difusão da obra, e da causa indígena. “Semana que vem Martírio já vai para a internet e logo vai para o Canal Curta. Corumbiara também não foi para as salas comerciais, mas já passou dezenas de vezes na TV e tem milhares de acesso no Youtube. É um filme que ficou”, compara.
Ciclo
Apesar do título, o diretor aposta na esperança para a causa dos Guarani-Kaiowá. “De certo modo, a violência de hoje é parte desta resistência. Quando, no começo dos anos 2000, começou o processo de estudo de demarcação de mais terras indígenas, e não apenas aqueles poucos territórios de confinamento, os fazendeiros se armaram e os índios ocuparam as áreas previstas para demarcação e que eles estavam demandando. Aí surge a violência”, observa.
O adiamento da demarcação definitiva e o jogo de empurra entre o Executivo e o Judiciário podem perpetuar os conflitos no campo, avalia o cineasta. “O governo agora diz que o STF deve decidir, mas acredito que é o Executivo quem deve fazer isso. Do contrário, a violência vai continuar. Talvez seja necessário até que tribunais internacionais decidam a questão”, considera. Martírio é o segundo filme de uma trilogia iniciada com Corumbiara, de 2009. A série se encerra com Adeus, Capitão, ainda em fase de desenvolvimento, sobre os raríssimos casos de índios que tiveram sucesso econômico no Brasil.
A colunista de ERMIRA viajou a convite do Festival de Brasília