De Brasília ? A terceira noite de mostra competitiva no Festival de Brasília foi dividida entre Ceará e Minas Gerais, com a exibição dos curtas Solon (MG), de Clarissa Campolina, e Constelação (MG), de Maurílio Martins, e os longas O Último Trago (CE), dos irmãos Luiz e Ricardo Pretti e Pedro Diogénes, e A Cidade Onde Envelheço (MG), primeiro de ficção de Marília Rocha. Como em todas as sessões desde o início do festival, na terça-feira, o protesto pelo Fora Temer foi quase unânime. A imensa maioria dos diretores até agora incluiu a vinheta Cinema Contra o Golpe, com sete segundos, antes do início de cada filme, e subiu ao palco vestindo camisetas com os dizeres “Cinema Contra o Golpe” estampados.
Na primeira sessão, com Solon e O Último Trago, ambos da produtora Alumbramento, o abstrato e o fantástico deram o tom das narrativas. O curta-metragem se vale da performance para desenvolver uma investigação sobre o tempo e a terra a partir de uma criatura que vive num cenário pós-apocalíptico e que parece ser uma nova forma de vida. No confronto entre a gênese e o fim do mundo, a ideia do renascimento se traduz na figura de um ser – uma performance de uma bailarina com roupas que sugerem o endoesqueleto de um inseto, que busca a vida e o contato com a terra, levou a plateia a uma rica experiência sensorial.
O trio formado pelos irmãos Luiz e Ricardo Pretti e Pedro Diogenes dirigiu antes os premiados Com os Punhos Cerrados e, em parceria com Guto Parente, os filmes Estrada para Ythaca, Os Monstros e No Lugar Errado. Se as pesquisas estéticas já se destacavam nestes trabalhos anteriores, em O Último Trago a experimentação ganha mais asas com o surrealismo e o fantástico.
A sinopse do longa fala de personagens que, em tempos diferentes, sacrificaram suas vidas em nome de uma resistência política, econômica, social e cultural. A escravidão, a perseguição aos índios, a exploração e a violência contra as mulheres ganham corpo em personagens que, apesar de viverem em épocas diferentes, são reunidas para cobrar justiça e vingança de formas extremas.
Nessa trama, o espírito de Valéria, uma índia que se apresenta numa boate como stripper, atravessa várias vidas e se manifesta em três mulheres de épocas diferentes. Na primeira linha narrativa, um grupo de mulheres acaba de cometer um crime e se esconde numa casa abandonada, numa época que aparenta ser a do Brasil Colônia. Em outro tempo-espaço, no meio da caatinga, um dono de bar é assombrado pelo espírito de uma mulher.
O argumento do filme, contam os diretores, foi criado através do método surrealista, em que várias ideias foram lançadas e, depois, ao longo dos anos, tratadas em diversas versões de roteiro. “Os quadros de Dalí já eram para o fantástico e a influência do cinema de Buñuel é muito grande neste trabalho, além de muita coisa do cinema de vanguarda dos anos 20 e 30”, conta Pedro Diogenes, um dos diretores do filme. “Primeiro apostamos na escrita automática do surrealismo e depois racionalizamos essas ideias até para poder passar por editais. Por outro lado, brincamos um pouco com o cinema de gênero, como os filmes de pirata de Raoul Walsh”, explica Luiz Pretti, um dos codiretores da produção.
“Esse nosso desejo pelo surrealismo foi o nosso principal condutor, esse desejo de se libertar da prisão das amarras lógicas da narrativa”, completa Ricardo Pretti. A obra de autores brasileiros como o cearense José Alcides Pinto, assim como pesquisas sobre os índios Tremembé e Pitaguarys, também contribuíram para o roteiro. “O espírito guerreiro de Valéria é uma alegoria da questão indígena, dessa guerra em que há 500 anos os índios vêm sendo explorados e aniquilados. Como diz a personagem, não podemos esquecer estes mortos”, proclama Ricardo Pretti.
O Último Trago é um filme exigente, que pede a entrega do espectador a uma experiência cinematográfica pouco usual e que pode decepcionar quem não abre mão de uma narrativa linear. Com a sua mistura de fantástico e surrealismo em diferentes níveis de linguagem, nem sempre a direção deixa claro onde quer chegar. Em alguns momentos, esse trabalho coletivo parece mesmo se perder, mas ao final até a suposta falta de sentido mostra-se plena de significado e transborda ousadia.
Desterro
A vida de duas jovens portuguesas em Belo Horizonte é o fio condutor do primeiro longa-metragem de ficção da diretora Marília Rocha, goiana radicada em Minas Gerais e premiada por documentários como Aboio e A Falta que Me Faz. Na trama uma jovem portuguesa que já está há algum tempo no País recebe em sua casa uma conterrânea que acaba de chegar de Portugal, uma amiga de infância com quem não tinha contato há vários anos.
Enquanto a primeira já vive um momento de desânimo, a outra está bastante empolgada com o novo mundo que está sendo apresentado a ela. O cotidiano das duas mulheres e suas dúvidas e anseios quanto ao futuro são a estrutura do filme, que se vale das personagens para falar sobre temas como o feminino, o desterro, a amizade e a saudade.
Ancorada na atuação cativante das atrizes Francisca Manuel e Elisabete Francisca, a diretora conquista o público com uma história que, apesar de não ter grandes pontos de virada como o roteiro tradicional do cinema clássico nem dramas de vida ou morte, é bastante envolvente. As inevitáveis diferenças culturais entre Brasil e Portugal são abordadas com leveza por Marília Rocha através de situações aparentemente banais, em detalhes como uma falha no azulejo ou um cigarro “filado” no ponto de ônibus.
A estreia da cineasta na ficção já se anunciava com o hibridismo de A Falta que me Faz, mas agora ela mergulha fundo na seara da ficção. O resultado é impecável, seja na intimidade criada entre as carismáticas personagens e a fotografia, seja no ritmo da narrativa ou na densidade sem exageros das situações desenvolvidas ao longo do filme.
A colunista de ERMIRA viajou a convite da organização do festival