De Brasília ? Os curtas-metragens chamaram a atenção do público durante o fim de semana no Festival de Brasília. Na noite de sábado, 24, olhares diferentes sobre o cotidiano das mulheres se destacaram na programação, como no curta pernambucano O Delírio é A Redenção dos Aflitos (foto no alto), sobre uma balconista de supermercado que precisa sair às pressas de seu apartamento num conjunto habitacional que está condenado.
A pressão do trabalho, de cuidar da mudança e da filha pequena, uma realidade opressora, toma conta da metade do filme. Na outra metade, o fantástico invade a narrativa, mas o curioso é que o aparentemente surreal complementa e comenta socialmente o cotidiano da protagonista. Os limites entre a vigília e o sonho se borram graças à direção precisa de Fellipe Fernandes e à convincente atuação de Nash Laila.
Estado Itinerante, produção mineira dirigida por Ana Carolina Soares, é outro forte candidato aos principais Candangos, o troféu do festival. O tema da violência doméstica, criminosamente invisível para a sociedade e as instituições, é abordado com a história de uma cobradora de ônibus que nunca tem onde dormir. Aos poucos, o curta desvenda seu passado, até que ele explode na tela numa catarse num bar. Sem mostrar a violência propriamente dita, o filme foca em suas sequelas físicas e emocionais e o resultado é perturbador.
A única atriz profissional do filme é Lira Ribas, impecável, que interage com cobradoras de verdade. A diretora ressaltou a influência dos filmes do cineasta Carlos Reichenbach, sobretudo de As Garotas do ABC, sobre o cotidiano de operárias em São Bernardo do Campo (SP). Ao apresentar Estado Itinerante, Ana Carolina lembrou que em Belo Horizonte o sistema de transporte vai abolir a função do cobrador de ônibus. “Boa parte são mulheres e arrimo de família. Em nome de um lógica de mercado estão abolindo uma importante fonte de trabalho e renda para pessoas de pouca qualificação e muita necessidade ”, protestou.
Outra produção mineira, o longa Elon Não Acredita na Morte preencheu a sala do Cine Brasília, ainda na noite de sábado, com um clima pesado de suspense. Em seu longa de estreia, o diretor Ricardo Alves Jr. tece a narrativa da busca incessante de um guarda noturno pela mulher desaparecida. Essa procura, como que numa extensão de seu estado interior, se dá em locais claustrofóbicos: a fábrica de tecelagem onde ela trabalha, um cortiço, corredores de hospitais públicos atolados de macas e gemidos, uma delegacia, um clube de striptease e até necrotérios.
“É uma linha tênue, entre realidade e imaginação, pela qual o espectador pode optar entre o que acontece e o que é só imaginação”, disse o cineasta ao falar sobre a ambiguidade do roteiro. O protagonista é vivido pelo ator Rômulo Braga, brasiliense radicado em Belo Horizonte. Clara Choveaux se reveza no papel das irmãs gêmeas.
Também no sábado o festival trouxe pela primeira vez uma produção amazonense na categoria ficção: Antes O Tempo Não Acabava. A trama é centrada nas dificuldades e descobertas de jovens indígenas que se mudam para a periferia de uma grande cidade – o protagonista é um rapaz em conflito entre o passado e a modernidade e com a própria identidade.
Porém, ao mesmo tempo em que tentam escapar dos estereótipos na abordagem da figura indígena, os diretores Sérgio Andrade e Fábio Baldo caem em contradições com a própria ousadia. Ao enfatizar questões complexas e tabus como o homossexualismo e o infanticídio nas sociedades indígenas, eles não conseguem desenvolver bem essas questões e o resultado se aproxima mais, ainda que involuntariamente, do sensacionalismo que do rompimento de paradigmas e estereótipos.
Racismo
No domingo, o curta documental Procura-se Irenice apresentou um belo esforço de justiça em relação ao passado ao contar a história de uma das mais importantes atletas do País. Os diretores Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça lembraram que sua protagonista, a Irenice do título, foi vítima do racismo e dos desmandos da ditadura, apesar do destaque no atletismo brasileiro e mundial entre meados dos anos 60 e começo dos anos 70. Hoje ela permanece praticamente apagada da memória oficial.
“O filme fala sobre uma ditadura que enraizou estruturas que continuam presentes”, afirmou Marco Escrivão, para quem os erros dos anos de chumbo se perpetuam na sociedade atual e nos conflitos políticos e sociais de hoje.
A vida em Cuba é o tema do longa documental Vinte, em que a diretora Alice Andrade retoma personagens de um documentário feito por ela no começo dos anos 90. No filme original, ela retrata casamentos logo após o fim da União Soviética e do consequente apoio econômico dado ao país latino. A diretora voltou a reencontrar as pessoas do primeiro filme nos anos de 2012, 2014 e 2015. Mais do que registrar as mudanças comuns de famílias ao longo dos anos, Vinte traça uma interessante painel das transições vividas pelo povo cubano com a abertura ao Ocidente e ao capitalismo.
Na noite de domingo, depois da sobriedade de Procura-se Irenice e Vinte, entrou em cena a irreverência de Demônia, comédia paulista sobre uma família de evangélicos que vira caso de polícia por causa de um triângulo amoroso entre uma mulher grávida, seu marido e seu primo. Logo a história vai parar nos jornais sensacionalistas e nas redes sociais. Com muito escracho, o filme conquistou a plateia do Cine Brasília, que ovacionou a produção. Numa chave erótica, o curta maranhense Bodas de Papel também deu o que falar no festival com cenas de sadomasoquismo e humor.
Prata da casa, o longa-metragem brasiliense Malícia, de Jimi Figueiredo, narra uma história de intrigas e traições entre personagens de classe média da capital federal. Numa aposta de dramaturgia, o diretor investe no filme de gênero, destoando da curadoria da mostra competitiva, que tem privilegiado produções experimentais ou de denúncia. Misturando elementos dos chamados filmes de golpe com o drama familiar, o longa, que não empolgou muito a plateia, apesar de ser uma produção local, e entediou a crítica, traz um elenco de atores tarimbados no cinema e na TV, como Viviane Pasmanter.
A colunista de ERMIRA viajou a convite da organização do festival