Como inventar um remédio para a existência? Como recuperar-se do nascimento?, pergunta-se o filósofo Emil Cioran (1911-1995), no seu livro Breviário da Decomposição.
A resposta que ele nos apresenta não é das mais animadoras: o mal da existência é irremediável. Se nos permitíssemos, por um instante apenas, retirar as vendas que nos tapam os olhos e ter um rasgo de clarividência, enxergaríamos a nossa condição primordial: a mais completa nudez. Veríamos que a realidade não passa de uma criação de nossos excessos, de nossos exageros e de nossos desregramentos. E que a vida “se cria no delírio e se desfaz no tédio”.
A filosofia de Cioran não nos oferece mesmo nenhum consolo, ao contrário, ela só aprofunda os nossos terrores mais recônditos. Mas, nesta época de tantos fanatismos e certezas inabaláveis, a leitura da obra desse pensador romeno proporciona uma saudável inquietação ao espírito daqueles que ainda não se deixaram seduzir por qualquer um dos vários extremismos à disposição do freguês, à semelhança das mercadorias exibidas nas prateleiras dos supermercados.
Este pensador que adotou a França como sua segunda pátria foi considerado, com justiça, um dos maiores estilistas da língua francesa do século 20. Sua prosa ao mesmo tempo poética e arrebatada, que tanto impressionou os contemporâneos do autor e continua fascinando gerações de leitores, já se apresenta com todo vigor em Breviário da Decomposição, primeiro livro de Cioran publicado em Paris, em 1949.
Nesta obra em que se percebe uma nítida influência de Nietzsche, Cioran leva seu pessimismo às últimas consequências para revelar uma visão desencantada do mundo e do ser humano. Mas esse ceticismo radical não seria, de alguma forma, também um extremismo? Sim, responde Cioran, o cético não deixa de ser um fanático, apaixonado que é por suas próprias dúvidas. Desiludido dos outros, Cioran também não se ilude consigo mesmo. Tem plena consciência de que o homem é um ser “dogmático por excelência” – ele simplesmente não sobrevive sem suas superstições.
“Sim, responde Cioran, o cético não deixa de ser um fanático, apaixonado que é por suas próprias dúvidas”
Diante das ideologias, das “doutrinas e farsas sangrentas”, Cioran prega a indiferença. Prefere os diletantes aos profetas; identifica-se mais com as hesitações de Hamlet do que com as certezas de São Paulo, o apóstolo. Mas sabe que a recusa a aderir a qualquer tipo de dogma tem um preço, que pode ser alto demais: aquele que se arriscar por essa estrada terá de irremediavelmente confrontar-se consigo próprio – e suportar a sua aterradora nulidade, a falta de sentido da sua vida.
Cioran escreve com o mesmo ardor exaltado dos místicos que ele confessa um dia ter “amado”, como Santa Tereza d’Ávila. Mas essa filosofia tão passional é ao mesmo tempo implacável e impiedosa. “Pó apaixonado por fantasmas, tal é o homem”, diz Cioran, que erigiu como seu “herói” filosófico justamente o controvertido Diógenes, o cínico que Platão chamava de “Sócrates enlouquecido”; o pensador que não propôs nada, mas que foi, segundo o autor romeno, o que melhor entendeu o ser humano, porque enxergou o “ridículo” da sua situação.
Contudo, este pensamento que, conforme Jacques Lacarrière, um estudioso da obra do romeno, abre diante dos nossos olhos “os apocalipses e abismos do ser”, indica pelo menos um caminho que possa tornar a nossa existência mais autêntica e tolerável. E este é o da arte, a única manifestação humana que de fato consegue expressar a nossa trágica condição de seres decaídos que erram sobre a Terra.
Perfil
Emil Cioran nasceu em 1911, na Romênia, onde formou-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste. Em 1937, mudou-se para a França, país em que permaneceria até a morte em 1995 e onde escreveria a maior parte da sua obra. Além de Breviário da Decomposição, ele publicou, entre outros, História e Utopia, Silogismos da Amargura e Exercícios de Admiração.
Trecho
Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados, mas quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incurável. Ela rebaixa o prestígio do inferno e converte os matadouros do tempo em paraísos. Que pecado cometeste para nascer, que crime para existir? Tua dor, como teu destino, não tem motivo. Sofrer verdadeiramente é aceitar a invasão dos males sem a desculpa da causalidade, como um favor da natureza demente, como um milagre negativo…
Na frase do Tempo os homens se inserem como vírgulas, enquanto que, para detê-las, tu te imobilizaste como um ponto.
In Breviário da Decomposição (Rocco, 2011)