A Academia Sueca, responsável pelo mais prestigiado prêmio literário do mundo, surpreendeu a todos entregando seu Nobel de Literatura deste ano para o cantor e compositor norte-americano Bob Dylan. Aos 75 anos, Dylan se torna o primeiro músico a conquistar a mais alta honraria literária, o que motivou questionamentos de toda ordem.
Há os que apontam injustiça, marketing, política e a mais recorrente negativa: Bob Dylan não é escritor, portanto, não merecia um prêmio destinado a reconhecer uma arte eminentemente literária. De fato, são insondáveis as motivações reais de cada cabeça da academia, como de resto de qualquer academia. Nenhum fórum tem fulcro só pelo que representa sua sigla, humanos que também são.
É plausível, sim, pensar que “nobelizar” Bob Dylan tenha sido uma jogada extraliterária. Convém lembrar que, entre outros preterimentos da Academia Sueca, o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) não foi agraciado por causa de sua simpatia pelo ditador chileno Augusto Pinochet (1915-2006).
Grandes escrevinhadores como James Joyce (1882-1941), Marcel Proust (1871-1922) ou ainda o russo Tolstói (1828-1910) também não ganharam. A lista atualizada é enorme: Ismail Kadaré, Joyce Carol Oates, Philip Roth ou ainda algum grande latino-americano, oriental, africano ou brasileiro (Guimarães Rosa, Drummond, Graciliano Ramos). De Dylan, só conheceremos as justificativas detalhadas da academia daqui a 50 anos, prazo do segredo de suas atas.
Música e literatura
Mas talvez o maior mérito da condecoração ao músico é retomar (sepultar, para muitos) a discussão sobre música e literatura, sobre se letra de música merece ou não ser considerada poesia. Na justificativa lacônica da academia, Dylan ganhou o prêmio por “ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. Foi, portanto, um prêmio a um cancionista e não a um beletrista.
Mesmo porque Dylan não tem produção literária, no sentido acadêmico do termo, que pudesse dar guarida incontestável ao prêmio, tampouco livros do gênero publicados O máximo de publicações que o bardo beat registra, além de suas letras impressas, é um livro de ficção (Tarântula, 1966, um misto de poesia e prosa) e uma prometida autobiografia seriada (Crônicas), cujo primeiro volume chegou ao Brasil em 2005.
Não é nova a querela acadêmica sobre letra de música e poesia, mas mundo afora essa discussão já está bem apaziguada. Diversas universidades nos Estados Unidos e na Europa já dão tratamento bastante similar às chamadas alta e baixa literatura, num surrado entendimento entre a produção artística sempre chancelada pela academia como sendo “alta cultura” e a popular (“baixa cultura”).
O próprio Bob Dylan já ganhou diversas disciplinas a estudar seus escritos musicais, tratados como poesia. As prestigiadas Oxford e Harvard estão entre elas, e a universidade de Cambridge publicou The Cambridge Companion to Bob Dylan. Lançado em 2009, o livro é um compêndio analítico de Dylan como cancionista e como ícone da cultura popular do século 20.
Lastro poético
Há, portanto, massa crítica a embasar o entendimento de letra de música como elemento constitutivo de uma arte também literária. Mas, bem antes desses estudos, poetas e intelectuais já apontavam, nos anos 60, o valor da criação de Bob Dylan para além da música. O crítico de música pernambucano José Teles lembra de Adrienne Rich (1929-2012), poetisa e ensaísta norte-americana, uma das primeiras intelectuais a enxergar em Dylan potencial acima da folk music (antes de sua ruidosa eletrificação – rockalizou o até então tradicional folk, em meados dos anos 60, para desgosto dos puristas do gênero).
Ela o colocava em par com o poeta John Barryman (1914-1972, ganhador de um prêmio Pulitzer em 1965 pelo livro The Dream Songs) e, citando ambos, escreveu um ensaio para o jornal The Harvard Advocate, em 1969, defendendo que “uma nova linguagem está se desenvolvendo em alguns americanos que trabalham com a língua inglesa. Onde outros países têm a segurança de uma língua nativa, de um dicionário, os americanos precisam improvisar sua própria linguagem a partir de elementos básicos de outra. (…) Ambos [Dylan e Barryman] criaram furtando, aludindo ou pegando emprestado de várias fontes, e ambos escreveram canções”.
Esse lastro poético de Dylan “na grande tradição da canção americana”, como acorre a Academia Sueca, poderia ser espichado para outros criadores posicionados nesse liame poesia e música, como os poetas beats Allen Ginsberg, Jack Kerouac até os mais populares (porque mais marcadamente musicais) Cole Porter e Ira Gershwin (e sua cara-metade artística e irmão mais novo George).
Não raro, músicos de diversos gêneros no mundo todo buscam poetas de ontem e hoje para serem musicados. Ou mesmo criam canções originais e singulares valendo-se do fazer poético. Se quiser repetir a dose, a Academia Sueca tem à disposição, por exemplo, Leonard Cohen, octogenário poeta canadense que também canta, na mesma linha da tradição cancionista norte-americana. E está vivo e brilhante (acaba de lançar mais um álbum inédito ? You Want it Darker).
Rádio Batuta, do Instituto Moreira Sales (IMS), apresenta algumas canções brasileiras influenciadas direta ou indiretamente pela obra de Bob Dylan
http://www.radiobatuta.com.br/Episodes/view/1163
Evolução histórica
Por fim, resta lembrar que a transformação do fazer artístico não é de agora. É histórica e abarca diferentes formatos e evolui com a manipulação humana. A crônica ou mesmo o romance não nasceram como o conhecemos hoje. Surgiram como relatos comezinhos, diários, impressos em jornal.
E aqui cabe perguntar: a fotografia, pode ser considerada arte ou mero registro imagético de um instante? Se sim, por que a palavra como aporte de melodia deveria ser considerada algo menor? Tanto não é que forjou uma nova arte, quiçá a mais popular arte da humanidade… Uma canção não existe sem a combinação construída de palavra e som.
Noves fora Dylan ter se tornado certamente o mais rico premiado do Nobel literário (único a ser laureado com os mais consagrados prêmios da indústria cultural – faturou também Grammy, Globo de Ouro e Oscar), o maior legado do prêmio será mesmo consolidar o entendimento da canção também como fazer poético e, portanto, literário. Que surjam novos artistas que mereçam a honraria.
Reedições recuperam fatos marcantes da carreira
Antes mesmo da premiação do Nobel, a gravadora Sony Music vinha relançando os registros ao vivo de Bob Dylan na série batizada de Bootleg. São vários momentos e shows do artista, mas um marco da carreira chega agora com uma caixa com 36 discos que registram todas a turnês do artista em 1966, incluindo o histórico episódio em que Dylan foi vaiado por puristas num show no Royal Albert Hall, em Londres.
Mesmo palco que ele voltou a visitar 47 anos depois, há três anos, para um novo show, naturalmente com um outro clima. A caixa das turnês pela Europa, pelos Estados Unidos e pela Austrália inclui o show realizado noutro palco ainda mais emblemático para o cantor, o do Newport Folk Festival, que sempre o idolatrara, mas que também virou-lhe as costas depois que ele adotou a guitarra elétrica.
“Não se pode assoviar na igreja, assim como não se pode tocar com guitarras num festival de folk”, disse à época Theodore Bikel, um dos idealizadores do festival de Newport, marcado por público e atrações conservadoras. Dylan se recusara a ser o líder daquela redoma musical, daí o descontentamento alimentado por uma esquerda militante que insuflava o público a vaiá-lo onde quer que ele fosse naquele 1966.
Há diversos vídeos na internet recuperando essas imagens, bem como vídeos e filmes, com destaque para No Direction Home (2005), documentário dirigido por Martin Scoresese, que conta bem a história.
Fora essas reedições históricas, Bob Dylan segue fazendo música e bem. Seus últimos álbuns de estúdios foram os ótimos Time Out of Mind (1997, ganhador de três Grammys no ano seguinte), Love And Theft (2001), Modern Times (2003) e Tempest (2012). Mais recentemente, voltou-se à tradicional canção norte-americana numa homenagem a Frank Sinatra (1915-1998), registrando sucessos de “The Voice” em dois álbuns: Shadows in the Night (2015) e Fallen Angels, lançado em maio passado
Confira vídeo com trecho da emblemática apresentação de Bob Dylan no Royal Albert Hall, Londres, 1966: