Acaba de sair em português O Seminário Livro 6 – O Desejo e sua Interpretação, de Jacques Lacan. Na contracapa da edição brasileira, Jacques-Alain Miller, herdeiro e intérprete oficial da obra do mestre psicanalista francês, resume a questão central do livro. “O que Lacan mostra? Que o desejo não é uma função biológica; que ele não é coordenado a um objeto natural; que seu objeto é fantasístico. Por conseguinte, o desejo é extravagante. É intangível para quem queira dominá-lo. Prega-nos peças, mas ao mesmo tempo, se não for reconhecido, fabrica sintoma. Numa análise, trata-se de interpretar, isto é, ler no sintoma a mensagem do desejo que ele encerra.” Em outras palavras, o desejo é inconsciente.
É claro que existem desejos conscientes, até pré-conscientes, mas esses são reconhecidos com facilidade. O problema é que nem sempre desejamos o que queremos. E tal condição do falante determina não só nossa vida íntima como também a esfera pública em que nos movemos. Nos tempos de ódio à política, aos políticos (afinal, por que eles constituiriam uma profissão?), muitas vezes gritamos por justiça – o querer consciente – e o que desejamos de verdade é vingança, convencidos intimamente de que a justiça não faz parte deste mundo. Foi preciso criar um ministério que aos trancos e barrancos a mantém como mero ideal ou crença e nosso sistema de crenças não é construído pela consciência, esse engano irremediável, segundo os psicanalistas.
“Muitas vezes gritamos por justiça – o querer consciente – e o que desejamos de verdade é vingança”
A indagação sobre o desejo vem de 1958-1959 e corresponde aos primeiros tempos do ensino de Lacan. O seminário só foi publicado em francês em 2013, e agora aparece na edição brasileira num alentado volume de 559 páginas, em que Lacan constrói pacientemente o grafo, um aparelho figurativo e conceitual, para mostrar, mais do que para demonstrar, a dependência do desejo à demanda, à linguagem, ao Grande Outro como tesouro dos significantes, Outro que se encarna em mãe (mOther, na sensacional invenção do norte-americano Bruce Finks), responsável pela transmissão da língua ao infante.
E o Pai nessa história? Miller construiu um discurso que funciona como quase unanimidade no meio analítico atual. Os analistas de várias tendências o repetem como se cantassem num coro de contentes, e são poucos os que tentam desafiná-lo, pondo em dúvida o chamado declínio da função paterna. Esse suposto declínio de que Lacan faz eco, criticando Freud por tentar salvar o Pai, baseia-se numa análise sociológica e política da conjuntura dita pós-moderna que teria sucedido o patriarcado. Retirada essa premissa, parte da teoria psicanalítica vai pro brejo, justamente aí onde o fantasma do Pai, mal simbolizado, retorna do real como alucinação. Vide o agronegócio, entre nós chamado de agrobusiness. Não é aí que o Pai manda, reina e governa? Que declínio? De braço dado com o cientista, o senhor-mestre-capitalista apenas sorri, desde, pelo menos, as páginas de O Capital em que Marx desvenda o truque da mais-valia e ensina o capitalista a ser capitalista. Mérito de Lacan não ter deixado essa história cair no esquecimento, associando mais-valia e gozo-a-mais.
O argumento de Miller é o seguinte: o desejo desorienta o falante, e por isso suscita a invenção de artifícios que “cumprem o papel de bússola”; os animais teriam uma “bússola natural”, também chamada de “instinto”, que faria com que não errassem na escolha de objetos (uma teoria que está caindo, quando se vê que os macacos bonobos, entre outros, são felizes da vida com suas práticas “perversas”, que os levam a condutas homossexuais e alianças “políticas” para destituição de machos alfa tirânicos, o que nos faz conjecturar se o regime desses animais também seria “pulsional”, como o dos seres humanos; a historiadora Elisabeth Roudinesco também foi mordida por essa questão sobre a “perversão” dos animais, no seu livro A Parte Obscura de Nós Mesmos.).
“Até pouco tempo atrás – continua Miller – nossas bússolas, por mais diversas que fossem, apontavam, sem exceção, para o mesmo norte: o Pai. Acreditava-se que o patriarcado era uma invariante antropológica. Seu declínio se acelerou com a igualdade de condições, a intensificação do poder do capitalismo, o predomínio da técnica. Estamos em fase de saída da era do Pai.” Será isso mesmo? A meu ver, nunca foi tão forte a ampla gama de figurações imaginárias das várias instâncias de paternidade, desde a revolução digital (que tem dono), passando pelas manipulações genéticas (que têm dono), pelo complexo militar industrial eletrônico, pelos fundamentalismos políticos e religiosos (calcados em alguma figuração do Pai), pelos donos das relações capital-trabalho, pelos donos da vida e da morte via remédios e drogas, pela medicalização da existência, pelo privilégio de ditar as cartas desde o exclusivo clube atômico (quem tem a bomba, também tem satélite, não precisa tanto de bússola quem monopoliza o GPS). Sem falar nas gaiatices do dia a dia, rei disso, rei daquilo. Se o Pai estivesse mesmo em tamanho declínio, por que tantos esforços para prescindir dele, como pregou Lacan? Se o Pai freudiano for apenas um tipo, que não sobe nem desce, puro padrão ideal de medida?
“Se o Pai estivesse mesmo em tamanho declínio, por que tantos esforços para prescindir dele, como pregou Lacan?”
Miller aponta a existência de “Outro discurso”, que estaria “em vias de suplantar o antigo”. Esse novo discurso valorizaria “a inovação no lugar da tradição” (o que dizer da tradição viva, os clássicos?), e “em vez da hierarquia, a rede”. A rede, sem dúvida, é um poderoso instrumento de comunicação (que, de repente, passou a existir para alguns lacanianos… Lacan ensinou que a comunicação não existe, mas tem fórmula). O inquietante é que se ignora que a rede social tem dono, são empresas (em outro lugar, e um pouco mais tarde, porém, o próprio Miller caracterizou o Google como sendo animado por um “desejo totalitário”, uma “neodivindade” que controla a informação). Sem chance de poder horizontal, como acontece nas grandes empresas que dominam todo e qualquer Estado. Sem chance de poder horizontal nas instituições analíticas, sobretudo as que pagam o preço de se constituírem como Escolas, onde as palavras do Mestre são sacrossantas, e o desavisado candidato que não cite a palavra do Mestre ao buscar um título ou um simples reconhecimento no pasará. Psicanálise, hoje.
Digamos que o discurso de Miller tenta acomodar-se à primeira fase do ensino de Lacan, os anos heroicos de 1950. Sabe-se que foi um ensino dramatizado por grandes reviravoltas, e o Seminário 6, sobre o desejo, já está marcado por um “remanejamento dos conformismos anteriormente instaurados, até mesmo seu esfacelamento”. Assim, “o atrativo do futuro prevalece sobre o peso do passado. O feminino alcança o viril. Ali onde reinava uma ordem imutável, fluxos transformacionais estendem incessantemente todo e qualquer limite.” Assim, a leitura de Miller centraliza a questão no declínio do Pai.
“Freud é da era do Pai”, diz ele. “Fez muito para salvá-lo. A Igreja terminou percebendo isso. Lacan seguiu o caminho desbravado por Freud, mas tal caminho levou-o a sugerir que o Pai é um sintoma. É o que ele mostra aqui com o exemplo de Hamlet.” Apaixonante debate. Ponto alto do Seminário 6 são as sete lições em que Lacan – na força da idade, no vigor de sua verve interpretativa, inclusive psicológica – elucida o enigma de Hamlet. Obsessivo, pelo desejo visto como impossível? Histérico, pela manutenção do desejo insatisfeito? Nem um, nem outro, diz Lacan, pois encarna um e outro, não sendo um ser humano real, pura ficção iluminadora dos avatares do desejo tanto na cultura quanto na intimidade da clínica. Lacan nos ajuda a decifrar o desejo no sonho, no sintoma, na fantasia que é seu sustentáculo. Esclarece sua posição na clínica e – cheio de fé – acredita que a intervenção do analista pode mudar as estruturas neuróticas (histeria e obsessão, mais abordadas no seminário), psicóticas (menos tratadas) e perversas (elogiadas). Belos tempos heroicos.
Extraordinária ferramenta de trabalho para o analista, puro deleite para os amantes do teatro de Shakespeare, seu polimento não se fez esperar. É Miller que o diz: “O que guardamos de Lacan – a formalização do Édipo, a ênfase no Nome-do-Pai – não era senão seu ponto de partida. O Seminário 6 já remaneja isso: o Édipo não é a solução única do desejo, é apenas sua forma normalizada; esta é patogênica; não esgota o destino do desejo. Daí o elogio da perversão que encerra o volume. Lacan lhe confere o valor de uma rebelião contra as identificações que asseguram a manutenção da rotina social.”
Voltamos à análise política. “Elogio da perversão”? “Rebelião”? Não é justamente disso que se alimenta o até hoje invencível capitalismo? Que foi feito da “santidade”, apontada por Lacan na sua entrevista intitulada Televisão como única possibilidade – fora do capitalismo – que seria capaz de vencê-lo? Talvez seja pedir muito, e não só aos analistas, como reconhece o próprio Lacan.
Livro: Seminário 6 – O Desejo e sua Interpretação
Autor: Jacques Lacan
Tradução: Cláudia Berliner
Editora: Zahar
Páginas: 562
Preço: 139,90
Muito bom.
Escrita instigante.