Às vezes, no inverno, eu afastava a cortina da janela para olhar, como uma distração, o mundo frio e mergulhado em cinza que se encontrava do lado de fora, lá embaixo, em todas as partes. Mais distantes, as formas dos prédios borradas sugeriam uma tela de pintor impressionista.
Dali, do terceiro andar, no meu pequeno estúdio, do meu posto de observação, eu via abertamente a rua Cardinal Lemoine com a sua ladeira, as calçadas úmidas e escorregadias, os carros estacionados com os vidros cobertos por uma camada de gelo, enquanto os passantes — les français de chaque jour —, agasalhados em roupas grossas, as mãos enfiadas no bolso, o corpo encolhido, subiam lentamente, como pinguins desgarrados, a bela rua de Paris, que, inúmeros metros depois, vencida a caminhada, terminava no grande espaço que forma a Place de la Contrescarpe, que data de 1852 e teve frequentadores como Verlaine, Rimbaud…
Em datas festivas, como a do 14 Juillet, quando eram organizados bailes públicos, os parisienses lotavam essa praça e dançavam, esses animados cidadãos do bairro.
Naquela época, eu nutria um gosto especial por ela porque era uma praça boêmia, democrática e exemplar do Quartier Latin. Uma praça também dos clochards. A praça do velho relógio, erguido ao lado do café La Choppe, que reunia emigrantes marroquinos e argelinos, operários, estudantes e pessoas simpáticas que moravam nos arredores.
Em sua permanência em Paris, Hemingway viveu, durante algum tempo, no número 74 da Cardinal Lemoine. Dali, eu olhava para baixo e ficava imaginando o escritor e Hadley, a sua mulher, os dois mais uma vez subindo aquela ladeira interminável… Se retomo essa imagem cinematográfica é porque eu a imaginei tantas vezes e de diversas formas como cena de roteiro, olhando para baixo, na direção da estação Place Monge…
Porque é misterioso e único, o inverno tinha o poder de envolver-me em melancolias derramadas, quase depressivas, que me soterravam. Ao admirar aquele trecho da rua, sentindo o peso que descia do céu enfermo, vinha ao meu espírito a lembrança dos filmes de Bergman, nos quais as personagens convivem com a solidão, a angústia e conflitos psicológicos intensos.
Talvez a Arte seja responsável pela associação da melancolia ao inverno. O seu contrário pode ser também verdadeiro. Ou essa relação é outra conversa?
Para quem viveu nos trópicos, a ausência da luz e do calor, do sol e do verde das plantas, do alarido dos pássaros e do voo dos insetos causava a impressão de que essa estação era excessiva, que durava em demasia, que tudo se fechava com trancas invioláveis e de que havia apenas no mundo a umidade esponjosa e a clausura. Pior de tudo, o sentimento de que a existência sofria uma pausa, que oprimia dias e noites, uma pausa para o recolhimento e a brandura.
“Porque é misterioso e único, o inverno tinha o poder de envolver-me em melancolias derramadas, quase depressivas, que me soterravam”
Apesar de tudo, os contrastes do inverno devem ser admirados porque são intrínsecos à tristeza dessa estação. Como um espelho dissoluto, o inverno é necessário para que o ritmo e o ciclo da natureza se cumpram.
Era quando as árvores de casca escura, com os seus braços esqueléticos estendidos, completamente nus, erguidos em fileira nos bulevares, pareciam invejar o movimento sensual das belas e elegantes mulheres que cobriam a cabeça com echarpes coloridas e pisavam, como gazelas, o calçamento urbano com as suas botas de cano longo, acima das quais sobressaíam meias vistosas.
“Inverno, eterno inferno” — escreveu Mário Faustino no início de seu soneto, cujo teor metafísico realça o enigma dessa estação.
Dali, da minha janela, eu ficava contemplando aquele mundo feito de cinza e solidão, de frio e restrição, os quais pareciam tornar-se sólidos à medida que a claridade ia desvanecendo-se…
Nesses momentos, eu era apenas um estrangeiro que observava a rua — e esperava, como os pássaros, a chegada da primavera.
(De Entre as Folhas do Jardim, livro de crônicas inédito)
Que lindo! Armastes un cenário de um quadro impressionista carregado de emoção.